Da série ‘Cartas do Amazonas’: Manoel Urbano

Era o mês de janeiro de 1998, ano em que as telas de cinema projetaram Titanic e Central do Brasil, pela primeira vez. O mesmo ano em que perdemos Tim Maia e Nelson Gonçalves. Eu havia chegado ao Aeroporto de Manaus ainda na madrugada fresca. Com muitas caixas contendo livros e medicações, tomei um táxi até a rodoviária, onde adormeci até o horário da partida do primeiro ônibus com destino a Manacapuru. A imagem de Manaus ficou esfumaçada pelo sono. O aconchego do assento e um sono profundo não me deixaram ver a balsa que partiu do Porto do São Raimundo.

A minha primeira visão da Amazônia fora de frondosas árvores que emolduravam a Rodovia Manoel Urbano. Um vapor denso subia aos céus, fazendo ali um tráfego líquido o qual apenas anos mais tarde eu entenderia. Aquele vapor regaria boa parte do Brasil, permitindo a agricultura e a farta vida intertropical, se desertificando do Centro-Oeste ao Sudeste.

A rodovia estadual, malcuidada e esburacada, homenageava Manoel Urbano da Encarnação, primeiro explorador da região do Rio Purus. Morto em idade avançada, segundo relatos, foi homenageado como importante sertanista do Amazonas. A pequena rodovia de pouco mais de 80 quilômetros separava dois mundos tão próximos e tão distantes. De Manaus a Manacapuru, um par de horas nos transportava até uma Amazônia profunda. Manacapuru, à beira do Rio Solimões, foi meu primeiro intercurso com o mundo Amazônico.

PUBLICIDADE

Recebido por missionários canadenses, eu iniciaria ali a viagem que marcaria minha vida para sempre. Em uma Macondo embebida na umidade e no suor de um povo matizado, a ideia de que também aquilo era Brasil me fez ruborizar. Na beira, qualquer passarela improvisada de madeira entre bares e prostíbulos era suficiente para dizer ao jovem estudante de Medicina que ele nunca mais sairia dali.

Durante meses, Manacapuru foi a minha única e deliciosa aventura juvenil. A pequena cidade não me deixou retornar tão cedo para a capital. Seu sistema de saúde tentava ainda se ajustar, dez anos depois da criação de algo que deveria ser pleno e único. Manacapuru era uma chaga aberta, entre casos de tuberculose, febre tifoide, malária, Aids, hanseníase e uma doença nova: a dengue. Eu, ainda que despertando do coma imposto pela vida acadêmica em Brasília, consegui ver muito pouco da tragédia tropical, mas o suficiente para que ela me abraçasse apertadamente.

Na volta para Manaus, pelo mesmo túnel do tempo que separava Manaus da sua periferia conurbada, a certeza do compromisso assumido de viver o resto dos meus dias lutando pela saúde do povo amazonense.

Hoje, 24 anos depois, é possível fazer o trajeto em pouco mais de meia hora. A ponte sobre o Rio Negro e uma rodovia finalmente duplicada trouxe esperança e promessa de dias melhores ao povo de lá. Quando passo pela Orla do Miriti, lembro-me com carinho dos finais de semana em que a gente pretendia que a vida era boa, e que a violência e o lixo da ‘Princesinha do Solimões’ nunca iriam avançar tanto.

 Manacapuru é o lugar em que o mundo gira em outra velocidade. Sua conexão com os problemas de Manaus insiste em desprezar aquele que já foi o paraíso dos anjos. O mundo, afinal, gravita em torno de Manacapuru, numa eterna ciranda. Nós outros, ofuscados por capitais luxuosas e inverdadeiras, perdemos a dimensão da pequena cidade-flor.

Em uma pequena casa de madeira, de fronte para a antiga fábrica de juta, o quarto sem ar-condicionado foi o primeiro lugar em que tive um olhar inteligente sobre mim mesmo e sobre o Brasil. Posso, portanto, dizer que eu nasci ali. Só por isso já terá Manacapuru encerrado sua boa ação. Por seus filhos e por Manoel Urbano, somos gratos à terra da grande nação Mura. Ali também ‘existem bravos que doam, sem orgulho nem falsa nobreza.’

PUBLICIDADE
(*)Médico Infectologista

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.