Da união entre povos Sateré-Mawé e Tukano, casa de comida indígena reabre no Centro de Manaus

Clarinda e Aline Sateré-Mawé - mãe e filha - à frente da Casa de Comida Indígena Biatüwi (Cristóvão Nonato/Concultura)

Alessandra Leite – Da Revista Cenarium

MANAUS – Reaberto recentemente, no dia 19 de abril, após meses fechado devido à pandemia de Covid-19, o restaurante Biatüwi vem travando uma luta para manter funcionando o antigo sonho do casal Clarinda Sateré-Mawé e do antropólogo Tukano João Paulo Barreto: o de unir as tradições culinárias dos povos Sateré-Mawé e Tukano para levar ao prato dos clientes a experiência de saborear as iguarias da Casa de Comida Indígena idealizada por eles.

Inaugurado em 14 de novembro de 2020, o restaurante funcionou por apenas um mês e precisou interromper as atividades devido às medidas de contenção ao Coronavírus. Ainda sem a movimentação de turistas no local, a Casa restringiu a abertura a três dias da semana: de quinta-feira a sábado. A proprietária relata a história do surgimento do local, os sabores e experiências oferecidos ao público e, especialmente, os temperos e modos de preparo inerentes às culturas indígenas do casal.

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“A ideia de abrir o nosso restaurante vinha de muito tempo, desde que começamos a realizar eventos para fazer a Quinhapira e vender no Centro de Medicina Indígena. Ao longo da jornada na universidade, começamos a pensar em uma forma de trazer a importância da nossa cultura indígena para a comida, agregando esse valor em cada prato”, relata Clarinda, que também é pedagoga e mestre em Antropologia. Carro-chefe do restaurante, cujo nome inicial era “Casa de Quinhapira”, o prato típico quer dizer “Comida dos Deuses’, em oãmaharã. Trata-se de um caldo à base de água, farinha e pimenta defumada.

A ausência da movimentação de turistas, especialmente devido à pandemia, limitou o funcionamento a três dias da semana (Alessandra Leite/Revista Cenarium)

Surgimento

O Centro de Medicina Indígena onde nasceu o sonho do restaurante é coordenado pelo marido de Clarinda, o antropólogo João Paulo Tukano e funciona no mesmo prédio, localizado na Rua Bernardo Ramos nº 97, no Centro Histórico de Manaus.

A quinhapira, segundo explica a agora chef Clarinda Sateré-Mawé, é uma iguaria tradicional dos povos tukanos do Alto Rio Negro e significa a união entre as aldeias. “Nós começamos o empreendimento como Casa de Quinhapira, mas mudamos o nome para ampliar as possibilidades e não limitar o cardápio do restaurante a um só povo”, ressalta.

Tempero

Questionada sobre o diferencial de cozinha e o modo de preparo da Quinhapira, Clarinda explica como se prepara a iguaria e destaca o caráter natural dos temperos utilizados em todos os alimentos, sendo o sal industrializado a única exceção. “Uma Quinhapira de tambaqui, por exemplo, leva o peixe, água, o sal, o tucupi preto e a pimenta defumada. Além do tucupi preto, o segredo é ferver por mais tempo. Quanto mais pimenta estiver fervento junto mais saboroso o caldo fica. Não existe Quinhapira sem pimenta”, explica.

Um dos segredos para dar mais sabor e consistência aos alimentos, de acordo com Clarinda, é o uso da panela de cerâmica. Na panela comum, ela explica que a Quinhapira fica pronta em dez minutos, já na de cerâmica esse tempo salta para 20 ou 30 minutos.

O caldo da quinhapira servido na cuia, de acordo com a tradição indígena (Cristóvão Nonato/Concultura)

O tucupi preto é o mesmo amarelo já conhecido e incorporado à mesa do manauara, porém, com a fervura reduz e, com o apuro, ganha outra tonalidade. “O tucupi preto é uma cultura do Alto Rio Negro e vem pronto de lá, mas nós já estamos pensando em como viabilizar esse processamento aqui em Manaus”, disse.

Clarinda acrescenta a parceria com o restaurante Caxiri, no entorno do Teatro Amazonas, sem a qual ela acredita que o projeto não teria se realizado. Durante os meses que antecederam a inauguração do Biatüwi, Clarinda e o marido João Paulo foram convidados pela chef Débora Shornik para assumir a cozinha aos sábados à noite para preparar a Quinhapira, ao mesmo tempo em que aprendiam como gerenciar o negócio.  

Nesse tempo, Débora e o sócio, o empresário paulista Ruy Tone, movimentaram uma campanha para ajudar a montar a cozinha do Biatüwi com doações. “Foi essa parceria que abriu a nossa visão. A nossa ideia não chegava nem perto de como viria a ser”, reconhece.

Panela de cerâmica ajuda a potencializar e conservar o sabor dos alimentos. O grafismo é do povo Tukano (Alessandra Leite/Revista Cenarium)

Duas tradições culinárias

A proposta do Biatüwi é proporcionar ao público o prazer de experimentar a cultura culinária de duas distintas comunidades indígenas amazônicas: a do Alto Rio Negro e a do Baixo Amazonas. Representada no restaurante pelo povo Tukano, o Alto Rio Negro é habitado por mais de 20 povos, cujas tradições interagem historicamente entre si por meio de um complexo sistema de saberes, narrativas míticas, pessoas, plantas, técnicas, bens e processos.

Um dos destaques desse conjunto são os múltiplos e sofisticados processamentos da mandioca, com mais de cem variedades e a exploração de uma rica pauta de frutos silvestres. Toda essa riqueza cultural, segundo os proprietários, deu origem ao reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro como patrimônio cultural do Brasil.

Já a região do Baixo Amazonas, onde está situada a aldeia Ponta Alegre, no município de Barreirinha, terra natal de Clarinda, é simbolizada pela sociedade Sateré-Mawé e abarca as bacias dos rios Andirá e Tapajós que, dentre outros traços, são conhecidos pela familiaridade com a cultura do guaraná, tendo legado à humanidade a domesticação desta planta amazônica.

Para além do complexo processo de preparo da semente do guaraná na feitura da bebida sapó, a culinária tradicional sateré é também caracterizada pelo uso das formigas sahai, de cogumelos variados e dos produtos originários da mandioca puba.

De acordo com Clarinda Sateré-Mawé, ambos os povos representados na Casa de Comida Indígena têm a base alimentar pautada no consumo de peixes, sejam eles cozidos, assados ou defumados e na farinha ou beiju derivados da mandioca. Nas duas regiões, também, tem-se o costume de comer o xibé – farinha com água – em qualquer momento do dia, principalmente após as refeições, e o consumo de formigas tostadas para servir de acompanhamento dos peixes.

História de superação

A chef, pedagoga e mestre em Antropologia, Clarinda Maria Ramos ou simplesmente Clarinda Sateré-Mawé, 53 anos, conta que começou a jornada rumo ao desconhecido no ano de 1988, aos 14 anos, quando precisou deixar a aldeia de origem por ter concluído o 4º ano primário daquela época e não mais poder avançar nos estudos.

“Fui morar em Barreirinha (a 330 quilômetros de Manaus) na casa de parentes para cursar o 5º ano. Nesse período eu perdi minha mãe e me senti enfraquecida nos estudos. Depois vim para Manaus trabalhar como doméstica na casa de uma família que eu não conhecia. A realidade era outra completamente diferente. Alguns meses depois comecei a me reunir com meus irmãos e passamos a morar juntos. O fato é que nós indígenas muitas vezes deixamos de lado os nossos costumes devido ao preconceito que sofremos na cidade. Por muito tempo deixei até de preparar os alimentos como uma indígena que sou”, relata.

A chef Clarinda Sateré-Mawé exibe as cuias na cozinha da Casa de Comida Indígena (Alessandra Leite/Revista Cenarium)

Clarinda conta que teve o seu primeiro casamento e o primeiro emprego de carteira assinada: como operadora de caixa em um supermercado. Anos depois, separada e mãe de quatro filhos, voltou a trabalhar como doméstica, mas não mais se acostumou. “Foi quando retornei para os estudos e concluí o Magistério. Meu pai sonhava que eu fosse professora. Depois dos quatro filhos eu finalizei os estudos, mas parei novamente por dez anos. Muitas de nós mulheres, ainda mais as indígenas, se submetem a certas situações por não terem coragem de andar com as próprias pernas. Ao longo do tempo eu conheci o João Paulo, a pessoa que me incentivou a voltar a estudar”, recorda.

Reconstrução

A chef da Casa de Comida Indígena lembra que não tinha mais o mesmo entusiasmo. Para ela, naquele momento, era como se o tempo de estudar tivesse passado. “Eu tinha medo de voltar a estudar e ser chamada de índia. Não tinha argumento para me defender como tenho hoje. Mas fiz o vestibular para Pedagogia e passei. Em 2017 finalizei e, no mesmo ano, concorri para a seleção de mestrado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O meu projeto de conclusão “Canto e Dança Sateré-Mawé, uma antropologia da musicalidade” deve ser transformado em um livro”, revela.

A Casa de Comida Indígena, para Clarinda, é a reconstrução de tudo o que ela deixou de fazer um dia, de praticar, até a própria relação com a feitura da comida, devido aos preconceitos vivenciados na cidade. “Muitos acham o cheiro da nossa comida muito forte. Mas hoje a maioria de nossos clientes é de não indígenas. São muitos os que nos visitam por curiosidade em experimentar os nossos sabores e nunca saem desapontados”, comemora.

Serviço:

O quê: Casa de Comida Indígena

Quando: de quinta a sábado (para o almoço) das 11h30 às 15h

Reservas de grupos e Delivery pelo número de Whatsapp: (92) 98832-84-08, falar com Aline Sateré-Mawé.

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