De volta à sociedade: ressocialização de apenados avança em presídios da região Norte

Reeducandos do Amazonas recebem oficina sobre produção de bolsas de plástico (Reprodução/Seap)

Cassandra Castro, Danilo Alves, Déborah Arruda e Iury Lima – Da Cenarium

BELÉM (PA), BRASÍLIA (DF), MANAUS (AM) E VILHENA (RO) – Superlotações nos presídios, guerras entre facções e falta de perspectiva para o futuro, essas são algumas características da realidade de muitos apenados nos presídios brasileiros. Porém, nos últimos anos, as gestões dos sistemas penitenciários do Amazonas, Pará e Rondônia, na região Norte, têm investido em projetos de ressocialização que mudem essa realidade para os apenados.

De acordo com dados da Secretaria Estadual de Assistência Penitenciária (Seap), o Amazonas conta com 12.196 detentos em todas as unidades prisionais do Estado, entre os regimes provisório, aberto, semiaberto, fechado e medida de segurança. Este total é de 65,59% a mais do que o número de vagas disponíveis no sistema.

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Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 82 estabelecimentos prisionais (delegacias, Centros de Detenção, Casa do Albergado, unidades prisionais e centros penitenciários) no Amazonas, que somam 5.378 vagas para presos.

Do total de apenados, 1.056 do regime fechado e semiaberto atuam com a prestação de serviços à comunidade, visando não apenas a remição de suas penas, como a garantia de que possam ser reintegrados à sociedade. Como parte dessa proposta, foi criado o programa “Trabalhando a Liberdade”, em 2019, que prevê o uso da mão de obra carcerária em serviços dentro e fora das unidades prisionais.

“Lembramos que esse número varia devido à entrada e saída de presos, que ocorre diariamente. Após análise do perfil psicológico, comportamental e social, os internos podem participar de projetos de remição de pena pelo trabalho, garantindo um dia de pena a menos a cada três dias de trabalho”, explicou a assessoria de comunicação da Seap.

As atividades realizadas são voltadas para a capacitação, educação e ressocialização da Pessoa Privada de Liberdade (PPL), desenvolvendo diversos tipos de aptidões. Os reeducandos, como são chamados os apenados que fazem parte do programa, executam serviços de limpeza, manutenção, conservação, pintura, hidráulica, agrícola, metalurgia, panificação, corte e costura e outros. O órgão, no entanto, ainda não possui registros da quantidade de reincidentes.

Apenados do programa “Trabalhando a Liberdade” realizando serviços de manutenção. (Reprodução/Seap)

A reintegração do apenado é garantida pela Lei 7.210/1984, a Lei de Execução Penal (LEP), que oferece ao detento condições para que ele consiga se regenerar e desta maneira não voltar a cometer crimes. Esta é uma medida que oferece dignidade e tratamento humanizado aos apenados, além de ser importante para incentivar a quebra de um ciclo vicioso de criminalidade muito comum no País e a diminuição das taxas de reincidência.

Reconhecimento

Conforme afirmou Walter Cruz, especialista em Segurança Pública no Amazonas, o programa “Trabalhando a Liberdade” é uma amostra de que o sistema pode ir além de ser apenas um mecanismo punitivista e garantir um processo digno de ressocialização do apenado.

“Sempre fui um crítico do Sistema de Segurança Pública do Estado do Amazonas, por vários motivos, mas sei reconhecer, por ser técnico na área, quando existem boas iniciativas. Passou-se realmente a valorizar a ressocialização do apenado e fazer com que os serviços comunitários fossem realizados para que houvesse uma melhor ressocialização. Isso está acontecendo e eu vejo como uma excelente ação da secretaria”, afirmou.

Integração e garantia de oportunidades

O caminho, no entanto, poderia ser melhor adaptado. Para Priscila Serra, liderança da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Amazonas, além de investimentos na educação e em serviços de profissionalização dos apenados, outros pontos poderiam ser alcançados. Para ela, o processo poderiam incluir ofertas de trabalho por carteira assinada e carta de indicação aos apenados, por exemplo, que garantiriam uma reintegração efetiva destes.

“Ressocializar é dar ao preso o suporte necessário para reintegrá-lo a sociedade. Hoje para uma pessoa que tem qualificação profissional, sem ficha criminal, é difícil, imagina para um preso(a) do regime semiaberto ou para um ex-presidiário. Ressocializar uma pessoa privada de liberdade é gerar oportunidades para quando ela for entrar no mercado de trabalho. A grande maioria de pessoas privadas de liberdade sequer concluíram o ensino fundamental e todos que cumprem pena eram para serem de fato ressocializados e não castigados ou desumanizados, já que não tiveram a mesma oportunidade de emprego, moradia, escola”, ressaltou Priscila.

“Esse ‘trabalho comunitário’ não é um projeto atual, é lei, tem que ser cumprida e a dificuldade está pela política de encarceramento em massa que vivemos, serviços comunitários era para ser uma pena alternativa e não um projeto para presos em regime fechado”, defendeu.

Ressocialização que combate a fome

Em Rondônia, terceiro Estado mais populoso da região Norte, a população carcerária é formada pelo total de 14.026 presos, de acordo com os dados levantados pelo Núcleo de Informações Penitenciárias (NIP) da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus). Eles ocupam 47 estabelecimentos penais espalhados pelos 52 municípios do Estado.

Segundo a pasta, até o mês de maio, a superlotação atingia a grande maioria das unidades prisionais rondonienses, que chegavam a registrar índices como o de 75,4% acima da capacidade. Apesar das dificuldades enfrentadas, iniciativas de ressocialização bem estabelecidas e humanizadas têm ganhado destaque pelos bons exemplos, principalmente no interior do Estado.

Conforme informações da Sejus, todos os apenados que se encontram em regime fechado podem prestar serviços comunitários a fim de diminuir suas penas, mas antes passam por uma espécie de classificação.

“A Sejus busca, por meio da oferta de educação no Sistema Penitenciário, possibilitar a reintegração dos reeducandos no mercado de trabalho, o que é fundamental para a ressocialização. Hoje a secretaria mantém parceria com órgãos como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Senac), Instituto Federal de Rondônia (Ifro), Instituto Estadual de Desenvolvimento Profissional de Rondônia (Idep), entre outras instituições para, assim, realizar constantemente cursos profissionalizantes”, destacou a secretaria, em nota, à CENARIUM.

Um desses trabalhos fica localizado na cidade de Vilhena, município a 705 quilômetros da capital Porto Velho. A cidade tem três presídios, contando com a Casa de Detenção para presos provisórios. No Centro de Ressocialização Cone Sul, a principal unidade prisional vilhenense, 35 apenados (10% do total dos encarcerados), selecionados por bom comportamento, cultivam uma horta e outras plantações com mais de 85 mil pés de abacaxi, 20 mil pés de alface e 40 mil pés de mandioca entre outras culturas, dentro do terreno do próprio presídio.

A plantação do Centro de Ressocialização Cone Sul alimenta famílias de baixa renda, hospitais e instituições filantrópicas, no interior de Rondônia. (Reprodução/Centro de Ressocialização Cone Sul)

A atividade é feita totalmente sem fins lucrativos e partiu da ideia de agentes penitenciários, que doaram as sementes para o início da plantação. Eles também contam com a ajuda de empresários, do Poder Judiciário e da população em geral. Além disso, para que saiam com uma profissão e aprendam sobre o plantio na prática, os detentos assistem às aulas do curso de Auxiliar Agrícola, ofertadas pelo Ifro.

“O ganho para a população é muito grande. Além de resgatarmos o apenado e mostrarmos para ele que o trabalho dignifica o homem, a sociedade ganha em termos de valores e de ressocialização, assim como suas famílias. Com o nosso programa, de cada 10 apenados, apenas um volta ao crime. Ele sai com outra mentalidade. O encarceramento sozinho não funciona, mas a ressocialização é primordial”, contou à reportagem da CENARIUM o policial penal do Centro de Ressocialização Cone Sul, Silvano Alves Pessoa.

O transformador poder da educação

Já na Colônia Penal e Presídio Feminino de Vilhena, estão encarcerados 44 apenados. A grande maioria é formada por mulheres, sendo 30 no total: 29 estão em regime fechado e apenas um em regime semiaberto. Os outros 14 presos são homens e também integram o regime semiaberto da casa de detenção.

A instituição direciona o trabalho de ressocialização especialmente às mulheres. Por meio da Secretaria de Estado da Justiça, a maior oferta feita pelo sistema penitenciário é a do conhecimento. Enquanto ficam reclusas, recebem cursos profissionalizantes para que possam trabalhar de maneira digna ao fim de suas penas. Do Presídio Feminino, elas têm a chance de saírem com títulos como os de Técnica em Agropecuária, Recepcionista em Serviço de Saúde e vários outros, também, certificados pelo Ifro. Mesmo na prisão, elas também ganham de presente a chance de concluir os estudos, estando a um passo do ensino superior quando a vida continuar do lado de fora.

No Presídio Feminino, as detentas ganham a chance de terminar o ensino médio, além de formação técnica ofertada pelo Instituto Federal de Rondônia. (Reprodução/Colônia Penal e Presídio Feminino – Vilhena)

Para a diretora do presídio, Cristiane Garcia, o acesso à educação para quem paga por seus crimes também faz parte da essência do que é ressocializar. Ela considera que uma pessoa a mais no mercado de trabalho ou dentro de uma sala de aula, aprendendo, evoluindo e conquistando melhores condições de vida é algo tão benéfico e útil para a sociedade quanto o emprego dessas pessoas na prestação de serviços comunitários, senão ainda mais transformador.

“A sociedade ganha por receber essas reeducandas melhor do que quando entraram, o trabalho da Sejus é ressocializar, mas muitas delas, nem foram socializadas, não estudaram e, a grande maioria, quando entra no sistema prisional, não possui sequer o ensino fundamental completo, e aqui é oferecida a oportunidade de concluir o ensino médio”, disse a diretora em entrevista à CENARIUM.

Hoje, em todo o Estado, 4.233 homens e mulheres que estão em reclusão já trabalham desempenhando atividades que foram ensinadas durante a ressocialização, sendo que parte desses apenados já garante rendimentos financeiros provenientes de remuneração.

Reconstrução pessoal

Dos 6.050 condenados pela Justiça no Estado do Pará, que atualmente estão sob custódia, aproximadamente 2,7 mil participam de programas de reinserção social oferecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Francisco Gurgel, 65, é um deles. O ex-comerciante nunca imaginaria que o crime de assassinato que cometeu em 2007 pudesse transformá-lo em operário de uma linha de produção de sandálias dentro do Complexo Penitenciário de Americano, no município de Santa Izabel, distante 45 quilômetros de Belém.

O processo de reconstrução pessoal começou quando percebeu que a solidão dentro das muralhas o fazia pensar em suicídio, uma vez que, desde quando foi preso, nunca havia recebido uma visita de familiares. Por isso, Francisco procurou a supervisão da unidade prisional e desde o ano passado iniciou o trabalho junto com 15 detentos. “Aos 65 anos eu não via mais perspectiva na vida. Até que um dia comecei a ler a Bíblia. Lá aprendi que toda forma de trabalho é recompensada. Foi então que pelo bom comportamento dentro da cadeia, tive a oportunidade de iniciar um trabalho que pudesse criar esperança além dos muros”, contou.

Francisco Gurgel, 65, trabalha com produção de sandálias no Complexo Penitenciário de Americano. (Reprodução)

O projeto de fabricação de sandálias dentro do Complexo de Americano, assim como outras dezenas de projetos de reinserção social, serve para detentos em regime semiaberto ou fechado, dependendo do comportamento, conforme a Seap.

Direito a salário

Quando inseridos nos programas, que vão desde de educação básica, até acompanhamento psicossocial pós-liberdade, os condenados pela Justiça ganham benefícios. Um deles é o salário-mínimo: 50% fica para o detento em uma poupança, outros 25% para a família e o restante para Seap, que realiza a manutenção dos projetos com o dinheiro. Além do pagamento pelo serviço, o prisioneiro ainda consegue a tão estimada remissão de pena.

De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária, a cada três meses trabalhados, o detento consegue um mês a menos na prisão. “Para gente, esse sim é o melhor pagamento”, confessou Daniel Santos Silva, 43, preso por homicídio em 2019 e hoje diz que quer continuar trabalhando com o que aprendeu dentro da cadeia.

O homem faz parte do projeto de agricultura dentro de Americano. O complexo possui 232 hectares, divididos em nove unidades prisionais e cerca de 400 presos integram esse projeto. Daniel cuida do viveiro de mudas. “Toda a semana nós trabalhamos com projetos que visam cuidar do meio-ambiente. Já plantei na horta, cuidei dos peixes no viveiro que daqui. Tudo é uma forma de ocuparmos a mente e nos preparamos para o futuro”, explicou.

Além da agricultura, a Seap também possui programas de corte e costura, panificação e marcenaria. Parte dos produtos são vendidos para o público externo. Metuzael é um dos mais esforçados no trabalho, de acordo com o tutor, que não pode ter o nome revelado. O rapaz revelou que ao chegar no sistema penitenciário não sabia ler e nem escrever.

Perfil definido

“Convivo dentro da minha cela com pessoas que têm a mesma oportunidade que eu, mas não aproveitam. Se deixam levar ou são reféns das facções por conta do vício. Eu também era assim, mas vi que era ilusão da juventude, mas é claro que não fosse apoio da minha família, eu provavelmente ainda estaria daquele lado. Em junho eu ganho minha liberdade e uma vida nova”, disse.

Todos os dias, Belchior Machado, diretor do programa de reinserção da Seap, se depara com histórias parecidas com as que acabamos contar nesta reportagem. É ele quem decide qual o perfil de cada detento para execução das atividades, e claro, se o interno tem condições para ressocialização. Apesar da atual tensão entre o sistema de segurança pública do Estado e as facções criminosas, ele acredita que há prisioneiro que tem ainda de voltar a conviver em sociedade.

“Nós proporcionamos todas as condições necessárias para que a pessoa agarre a oportunidade de mudar de vida. Ainda possuímos outros projetos que serão executados em breve. Portanto, como todas as pessoas que fazem parte desse serviço, eles são motivados a acreditar em um novo futuro, mas não é uma via de mão única, quem está preso quer liberdade, mas com dignidade e garantia de uma vida melhor”, concluiu.

Desafios da pandemia para os apenados

A pandemia mundial da Covid-19 trouxe transtornos também para os que se encontram nas unidades do Sistema Prisional Brasileiro. Segundo os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) que concentram informações referentes ao primeiro semestre de 2020, aproximadamente existem quase 760 mil presos, número que inclui aqueles que não estão sob a tutela dos Sistemas Penitenciários. Nas unidades prisionais brasileiras há pouco mais de 702 mil presos que, a exemplo das pessoas que não se encontram privadas da liberdade, também sentiram os efeitos da pandemia de Covid-19.

A advogada criminalista, Cristiane Damasceno, diz que as dificuldades surgidas para o sistema prisional foram parecidas com as ocorridas em outros espaços. “Tivemos dificuldades de acesso dos advogados aos clientes, ter de transformar o meio presencial em virtual, ver alternativas de acesso às famílias dos presos”. No caso das unidades onde funciona o regime semiaberto, algumas empresas responsáveis colocaram seus funcionários em home office o que trouxe prejuízo ao sistema, segundo a especialista.

Ela também destaca que a pior coisa que aconteceu para os presos foi a limitação de acesso aos advogados, já que as conversas são feitas por videoconferência, algo que também dificulta o direito dos apenados à defesa. Cristiane Damasceno também falou da flexibilização das medidas para os que cometeram crimes menos graves. Em muitos Estados, os juízes passaram a flexibilizar algumas regras como a adoção da prisão domiciliar, monitoração eletrônica e mudanças de regimes. Mas, a advogada vê com preocupação a questão prisional no Brasil e diz que é necessário olhar para a complexidade do sistema com uma visão sociológica. Ela fala que é necessário olhar não apenas os direitos dos presos, mas também dos agentes prisionais.

Ela vai mais além e diz que o cenário visto nas unidades prisionais é um problema originário da formação social do Brasil. “As pessoas geralmente polarizam os direitos humanos, direitos que constam na nossa Constituição. O preso tem que passar pelo processo e ter direito de remir pena, o de presunção de inocência e todos os demais garantidos na lei maior”. A especialista acredita que a garantia do bem-estar social vai se refletir dentro da unidade prisional, um caminho ainda longo a ser trilhado no Brasil.

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