Uma das hipóteses consideradas pelos investigadores, o crime de peculato consiste no ato de apropriação, por funcionário público, de dinheiro, valor ou bem público ou particular de que ele tenha posse em razão do cargo.
Fica configurado também quando há desvio desse bem em proveito próprio ou alheio. A pena é de 2 a 12 anos de prisão, além de multa.
Os advogados do ex-presidente dizem que Bolsonaro tinha o direito de vender as joias e apenas atribuem a um “equívoco” ou “desinformação” por parte da assessoria da Presidência a falta de comunicação prévia sobre a intenção do ex-mandatário.
Jair Bolsonaro chega no aeroporto de Brasília onde embarcaria rumo a Porto Alegre (Gabriela Biló – 22.junho.2023/ Folhapress)
O cerne do argumento da defesa está em uma legislação de 1991, mas desconsidera decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) de 2016 que estabeleceu regras mais claras, e mais rígidas, em relação aos presentes recebidos pelos presidentes.
A defesa de Bolsonaro afirma que a decisão da corte de contas “não trata sobre a alienação de bens do acervo privado de interesse público dos presidentes”.
“Nem poderia pois o TCU não pode revogar uma lei aprovada no Congresso que expressamente cria o permissivo de alienação e estabelece direitos hereditários sobre tais bens”, afirmou em nota.
De acordo com as investigações da Polícia Federal, Bolsonaro e auxiliares levaram artigos de luxo para os Estados Unidos e lá os colocaram à venda.
Um lote de joias foi oferecido em site de leilão, mas não houve interessados. Um relógio da marca Rolex foi negociado. Posteriormente, os artigos foram resgatados para serem entregues ao Estado brasileiro por determinação do Tribunal de Contas da União.
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes autorizou a busca e apreensão em endereços de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) (Sergio Lima-30.jun.23/AFP)
A legislação prevê a alienação dos itens que compõem os acervos presidenciais, desde que atendidas algumas formalidades. Por exemplo, oferecê-los à União, que tem preferência de compra para eventual incorporação ao patrimônio público.
Bolsonaro não fez nenhum comunicado, segundo disse à Folha a defesa do ex-presidente. “Não houve comunicação prévia à Comissão de Memória dos Presidentes da República, por algum equívoco ou desinformação da assessoria da Presidência”, afirmou.
“Porém essa é uma mera irregularidade de caráter administrativo e que não convola o bem privado em público, de sorte que não há possibilidade, nem mesmo em tese, de ser havido como objeto de peculato”, completou a defesa do ex-presidente.
A defesa de Bolsonaro entende que os artigos de luxo pertencem a Bolsonaro e que ele tinha amparo legal para dispor deles como bem entendesse. Sustenta essa linha de argumentação com base em uma lei e um decreto presidencial que definiram regras sobre o assunto.
Pai do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o general de exército Mauro César Lourena Cid ajudou o filho no negocio (Roberto Oliveira/Alesp)
A lei 8.394/1991, do governo Fernando Collor, trata da preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República.
De acordo com ela, os documentos que constituem o acervo presidencial privado são, na sua origem, de propriedade do presidente, “inclusive para fins de herança, doação ou venda”.
A norma diz que a União terá direito de preferência em uma eventual venda e que os artigos também “não poderão ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União”.
Editado na gestão Fernando Henrique Cardoso, o decreto 4.344/2002 regulamentou a lei e definiu que os acervos documentais privados dos presidentes são “os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais”.
Esse arcabouço legal terminou por levar a uma situação em que os próprios presidentes e seus auxiliares estariam definindo, sem uma regra clara, o que ao final do mandato ficaria sob domínio público e o que seria incorporado ao patrimônio privado.
O TCU (Tribunal de Contas de União) é órgão de controle externo do governo federal (Gabriela Biló-14.abr.23/Folhapress)
“Imagine-se a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que (…) possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, escreve o ministro Wallton Alencar, relator do caso.
O ministro destacou o fato de que o dinheiro para bancar presentes dados a autoridades estrangeiras sai dos cofres públicos. Portanto, em contrapartida, os presentes recebidos também devem ser públicos, “à exceção de itens de uso pessoal ou de caráter personalíssimo”.
Ao final do julgamento, foram recomendados à Casa Civil estudos para aperfeiçoar a legislação que regulamenta os acervos presidenciais, “para deixar assente os motivos e as excepcionais ocasiões em que os documentos bibliográficos e museológicos, recebidos pelo presidente da República, no exercício dessa função devem ser de sua propriedade”.
O TCU afirmou que deveriam permanecer “como bens públicos”, sob a guarda da Presidência, “todos os demais presentes —incluídas as obras de arte e os objetos tridimensionais”.
Nesse acórdão, o TCU identificou que, de 1.073 presentes recebidos de 2002 a 2016, apenas 15 haviam sido incorporados ao patrimônio público. Com isso, determinou a devolução de 434 presentes dados ao presidente Lula, de 2003 a 2010, e de outros 117 recebidos por Dilma Rousseff, de 2011 a 2016.
Ambos ilícitos possuem penas altas e, em caso de uma eventual condenação, após trânsito em julgado, poderiam resultar em pena de prisão em regime fechado ou semiaberto. No momento, não há nem sequer uma denúncia formal, e o caso ainda está em fase de investigação.
Proteção do patrimônio privado dos presidentes A lei criada para proteger o patrimônio da Presidência só foi criada em 1991, sob o governo de Fernando Collor —antes, não houve texto regulando o assunto. Para a legislação, que não cita explicitamente presentes recebidos, documentos e outros itens integram o patrimônio cultural brasileiro, e a União teria preferência em caso de venda
Decreto e troca de presentes Nove anos depois, em 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) regulamentou a lei sancionada por Collor por meio de decreto.
Na norma, manteve-se a preservação do acervo privado, mas os itens recebidos em eventos denominados de “cerimônias de troca de presentes” deveriam ser incorporados à União. Com isso, a legislação abria brecha para a interpretação de que itens recebidos em eventos de outra natureza poderiam ir para acervo pessoal.
Acórdão do TCU O TCU (Tribunal de Contas da União), em acórdão de 2016, reformulou a regulamentação proposta por Fernando Henrique e interpretou que o recebimento de presentes em qualquer cerimônia com outros chefes de Estado ou de governo deveria ser considerado patrimônio público.
Segundo o tribunal, foram excluídos da lei apenas os itens de natureza personalíssima, como medalhas personalizadas e grã-colar, ou de consumo direto, como bonés, camisetas, gravata, chinelo e perfumes.
Devoluções de Lula e Dilma Junto da nova interpretação legal, o TCU constatou que 568 bens recebidos por Lula, no período de 2003 a 2010, e 144 por Dilma deveriam ser localizados e devolvidos à União. Conforme a corte, a maioria dos bens foi entregue.
Só ficou pendente a devolução de oito itens recebidos por Lula, que somavam R$ 11.748,40, e seis recebidos por Dilma, que totalizavam R$ 4.873. No caso do Lula, como os itens não puderam ser localizados, foi acordado o pagamento do valor total dos bens.
Estratégia da defesa de Bolsonaro O advogado do ex-presidente Jair Bolsonaro, Paulo Amador Cunha Bueno, indicou na sexta-feira (18) que a estratégia de defesa seguirá pela interpretação estrita da legislação sobre presentes de 1991, evitando levar em conta o acórdão do TCU e argumentando que, com a possibilidade de manter o item em acervo privado, não há delito de peculato —crime de desvio de bem ou dinheiro público apreciável.
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