Descolonizar o conhecimento: reflexões sobre a Educação Indígena
Por: Roger Adan Chambi Mayta
20 de novembro de 2025Lembro-me de uma comunidade indígena no município de Huari, no departamento de Oruro, em meu país, Bolívia. Uma fundação filantrópica não entendia os motivos pelos quais o povo não queria que esta fundação construísse uma escola para a própria comunidade. O povo não queria porque diziam o seguinte: “nós sabemos que vocês construíram uma escola na comunidade vizinha, e percebemos que as crianças, depois de sair da escola, não queriam mais falar a própria língua, sentiam vergonha de nossos costumes, e então foram morar nas cidades, e por isso essa comunidade agora ficou vazia”. Então, a escola, a educação, que sempre falamos que é libertadora, pode ser também alienadora, pode apagar a própria cultura de nossos povos, pode fazer-nos esquecer de nossas cosmovisões ancestrais.
O colonialismo espanhol e português nesta região roubou muitos recursos, como mineração, madeira e outros produtos indígenas, disso sabemos muito. Mas o colonialismo, além de extinguir nossos antepassados, também extinguiu nossos centros de ensino, nossas próprias gramáticas indígenas, nossos cientistas, arquitetos, engenheiros e artistas que construíram Tiwanaku, Machu Picchu, Ollantaytambo, Teotihuacan, Yucatán, os grandes sistemas hídricos da Amazônia, o próprio bioma da Amazônia, a medicina que já realizava operações cerebrais, transfusões de sangue, a metalurgia, o trabalho com ouro e prata, a tecnologia que criou o milho e a batata. Tantas realizações que estão registradas nas crônicas, livros de pesquisa e, principalmente, na sabedoria de nossos avós e na sabedoria de nossos povos.
Assim, o colonialismo implementou uma política para tentar anular nossa sabedoria, nossos conhecimentos, para nos tornar apenas um povo explorado, extinto e com uma baixa autoestima. Com a morte de milhares de nossos yatiris (nossos pajés e xamãs) nossa história quase foi extinguida. Fomos proibidos de conhecer nossa própria história, por isso, até recentemente, a história de nossos países começava em 12 de outubro de 1492, com a chegada de Cristóvão Colombo, tentando nos fazer esquecer assim a verdadeira história dos aymaras, quéchuas, potiguaras, tukanos, muras, mayas, entre tantos outros povos indígenas que hoje em dia estamos lutando para reconstruir e fortalecer nossa história que tentaram nos proibir.
O escritor indianista Guillermo Carnero dizia: “O povo que não sabe de onde vem historicamente, não sabe para onde vai historicamente.” Daí a importância de conhecer nossa história, daí que nós, como povos indígenas, não só devemos ter consciência de classe, mas o mais importante para nós é ter consciência histórica. Conhecer nosso passado para entender o que foi feito com nossos povos, quais lutas nossos avós lideraram, os motivos dessas lutas e só assim saberemos a responsabilidade que temos quando estamos escrevendo, ou quando estamos na universidade ou no governo. Saberemos que o que temos hoje não é um presente que caiu do céu, é o resultado do suor e do sangue derramado por nossos pais, mães e avós, que lutaram para que tenhamos mais acessos.
Por isso é importante não se perder no caminho. Conheci muitas pessoas indígenas que, sabendo ler, escrever e tendo acesso ao conhecimento acadêmico, tornaram-se mais brancas do que o próprio branco. Muitos colegas na academia ainda acreditam que as respostas estão só na Europa, no Ocidente; desejam oferecer soluções para os problemas indígenas usando conceitos estrangeiros, para assim se sentir mais “objetivos”, mais perto da academia branca. Muitos recorrem a Karl Marx para entender o sentido de comunidade indígena, quando poderiam conversar diretamente com a própria comunidade, poderiam observar o entorno e assim perceber que não precisamos ir tão longe para encontrar respostas para nossos problemas. Com isso, não estou dizendo que não devemos ler a produção acadêmica e literária europeia e ocidental, não, apenas que devemos não colocar esse conhecimento no centro, apenas usá-lo como mais uma referência entre tantos outros conhecimentos. Sobre isso, Dipesh Chakrabarty disse que devemos provincializar o conhecimento europeu.
Mas o que são nossas cosmovisões ancestrais? Muitos acham que são práticas antigas e que apenas os mais antigos conhecem, mas não é tão simples assim. Para compreender nossas cosmovisões ancestrais não precisamos só procurar nos grandes livros de história e antropologia. Nós, como indígenas, poderíamos começar olhando nosso entorno, observando as práticas das nossas mães, nossos pais, e tomar consciência de como fomos educados, de como nos relacionamos com o ambiente e a natureza. Nossa cosmovisão está presente no cotidiano. Só precisamos reconhecê-la e atribuir-lhe o sentido hierárquico que merece.
Por isso, quando minha mãe olha para o céu, observa as nuvens dispersas, ela diz: “amanhã vai chover, recolhe as roupas do varal”. Quando ouve o canto do ch’iwanku, que é um pássaro que canta alto, ela diz que alguém nos vai visitar. Quando eu era criança e subia a montanha com a minha mãe, ela me ensinava que temos que respeitar as montanhas, porque elas são nossas avós: “temos que respeitá-las para que elas nos protejam no caminho, para que não peguemos alguma doença”.
Portanto, temos muitas coisas no cotidiano que nos fazem entender que nossa cosmovisão ancestral é principalmente um modo de nos relacionarmos, um modo de ser e estar com a natureza como ser vivo, com nossa mãe, a Pachamama. Mas o pensamento hegemônico nas universidades, geralmente anti-indígena, nos insinuou que essa forma de se relacionar é coisa de selvagens, de povos atrasados, de qualquer coisa menos ciência. Por isso, quando o indígena entra na academia, muitas vezes, quer modificar-se, quer deixar de ser indígena, quer aprender o outro para se transformar no outro. Eu sei que não há nada de errado em aprender os conhecimentos do outro, mas primeiro temos que ter as raízes bem firmes para depois florescer até onde desejamos e, assim, usar o conhecimento, independentemente de sua origem, para nossa libertação.
Nas cartas que o escritor indigenista Bonfil Batalla, do México, escreveu para o teórico indianista boliviano Fausto Reinaga, no contexto da criação de uma turma indígena na universidade nos anos 1979, dizia, sem medo, o seguinte:
“Elaboramos um plano de trabalho bastante heterodoxo (eu diria herege) que busca que esse grupo de estudantes recupere e fundamente sua identidade e, ao mesmo tempo, se aproprie criticamente dos conhecimentos que considerem úteis da linguística, da história e da antropologia no estilo ocidental, para que os incorporem à sua própria cultura indígena e os utilizem como instrumentos de sua luta de libertação. Conheço bem os riscos, ou acredito conhecê-los; se falharmos, teremos criado mais uma geração de oportunistas que, disfarçados de índios, buscarão apenas seu próprio benefício e aproveitarão sua própria situação para acentuar a exploração de seu povo. Mas se acertarmos, meu querido don Fausto, se acertarmos…”
É fundamental reconhecer o papel dos povos indígenas na universidade, não apenas para evitar que nos tornemos uma “curiosidade exótica”, mas para transformar a própria instituição a partir da nossa visão e cosmovisão. Temos muito a fazer para fortalecer a ideia de que nossos povos não possuem apenas uma cosmovisão indígena, mas também uma filosofia própria e tecnologias ancestrais. Devemos lembrar, constantemente, que nossos povos desenvolveram ciência ao longo de sua história. Além do colonialismo, que tentou nos fazer sentir vergonha da nossa cultura, seguimos sendo os guardiões de um conhecimento profundo e valioso. Como disse a socióloga Silvia Rivera Cusicanqui: “Nós, os povos indígenas, fomos oprimidos, mas nunca vencidos”. Nossa luta é pela recuperação do que nos pertence: nossa história, nossa identidade e nosso conhecimento.