Desinformação e estoque baixo travam vacinação de crianças contra a Covid-19

Em São Paulo, crianças a partir de 6 anos são vacinadas contra Covid-19 com a Coronavac (Reprodução/ CNN Brasil)
Com informações do Estadão

A aplicação de vacinas contra a Covid-19 em crianças de cinco a 11 anos avança em ritmo lento no País. Desinformação, problemas de planejamento e escassez de imunizantes dificultam o avanço da campanha, iniciada só um mês depois da aprovação das autoridades sanitárias. Levantamento feito pelo Estadão junto aos governos estaduais mostra que, até a última segunda-feira, 31, cerca de 1,9 milhão de crianças tinham sido vacinadas no Brasil — o que equivale a 10% do público-alvo.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse em mais de uma oportunidade que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem capacidade para vacinar 2,4 milhões de pessoas por dia. Há salas de vacinação e profissionais suficientes para isso e o número já foi batido diversas vezes durante a campanha de imunização contra a Covid-19. Considerando que o Brasil vem aplicando metade disso, cerca de 1,2 milhão de doses por dia, há espaço para vacinar mais de um milhão de crianças diariamente. No entanto, a média dessas primeiras duas semanas de campanha é de 130 mil vacinas aplicadas por dia no público infantil. Os números foram informados pelos Estados – pode haver defasagem por causa da demora entre a aplicação da vacina e o registro no sistema.

A falta de vacinas é um dos principais motivos para a lentidão na campanha — até esta terça-feira, 1º, o governo federal tinha distribuído 8 milhões de doses para imunizar as 20 milhões de crianças brasileiras. Esse foi o fator que fez a campanha infantil começar atrasada no País: as primeiras doses só chegaram na maioria das cidades em 17 de janeiro, um mês após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar o uso da vacina pediátrica da Pfizer.

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O contrato do governo com a farmacêutica americana, assinado no fim de novembro, prevê a entrega de 20 milhões de doses da vacina entre os meses de janeiro e março. Isso é suficiente para aplicar as duas doses em apenas metade do público-alvo. No cenário de falta de imunizantes, algumas cidades têm adotado critérios específicos e priorizado crianças mais velhas ou com comorbidades.

Já a Coronavac, vacina contra a Covid fabricada no Brasil pelo Instituto Butantan, foi aprovada pela Anvisa para uso em crianças de seis a 11 anos em 20 de janeiro. Isso não transformou o cenário nos Estados, já que a maioria tem baixo estoque do imunizante. As exceções são o Distrito Federal e São Paulo, locais onde há doses suficientes para vacinar todo o público infantil — e que lideram o ranking. O Ministério da Saúde afirmou ter seis milhões de doses em estoque e estima haver mais três milhões com os Estados. Se as projeções estiverem corretas, o total é suficiente para imunizar cerca de 4,5 milhões de crianças. Outras 5,5 milhões ainda não têm vacina garantida.

Nesta semana, o Ministério da Saúde consultou o Butantan sobre a possibilidade de encomendar mais dez milhões de doses da vacina. O instituto diz ter o quantitativo à pronta entrega e afirmou que pode fornecer outras 20 milhões de doses em um prazo de até 25 dias após a assinatura do contrato. O acordo ainda não foi firmado. O último contrato entre as duas partes encerrou em setembro e não foi renovado pela gestão Bolsonaro. A última grande remessa de Coronavac foi enviada aos Estados e ao Distrito Federal em 16 de setembro.

Além da falta de doses, que já paralisou a vacinação em cidades como o Rio de Janeiro, a desinformação trava a campanha de imunização infantil. A divulgadora científica Ana Arnt, professora do instituto de biologia da Unicamp e coordenadora do Blog de Ciência da universidade, acompanha a disseminação de informações falsas nas redes sociais e diz que a situação tem piorado. “A quantidade de informações erradas e a crueldade delas (fake news) estão muito maiores do que no ano passado”, afirma.

Ela diz que a desinformação gerada pelos movimentos antivacina estão muito mais sofisticadas e as reações adversas — raríssimas — são um dos principais focos. Se no ano passado notícias falsas diziam que o imunizante injetaria um chip em você, hoje elas falam que a vacina pode causar miocardite ou mal súbito nas crianças. “O movimento antivacina se alimenta dessa hesitação com crianças desde os anos 2000”, afirma.

Arnt também culpa o governo federal pela baixa adesão à campanha de vacinação. Ela afirma que as propagandas do Ministério da Saúde direcionadas ao público infantil colocam um “ponto de interrogação” e “incentivam a hesitação vacinal”. As publicações da pasta nas redes sociais dizem que a vacinação de crianças “é uma escolha dos pais e responsáveis” e precisa de autorização.

O órgão não incentiva a vacinação das crianças de maneira direta em seus canais de comunicação. “É o que a gente chama de incentivar a hesitação vacinal, o que é muito sério e inédito em nosso País”, diz a professora. O próprio presidente Jair Bolsonaro tem colocado em xeque a segurança e a eficácia das vacinas – na contramão do que dizem as entidades científicas – e já disse que não levará a filha, de 11 anos, para receber a proteção.

O médico Guilherme Werneck, doutor em Saúde Pública e Epidemiologia pela Universidade de Harvard (EUA), afirma que tanto a Coronavac quanto a Pfizer foram aplicadas em milhões de crianças de vários países e os efeitos colaterais são raríssimos. “O risco que a criança tem de desenvolver um problema pela vacinação é ínfimo em relação ao risco de ser hospitalizada e morrer de Covid. O custo benefício é excelente. Não tem nenhum motivo para não vacinar as crianças”, diz.

Últimas a serem incluídas no plano de vacinação, as internações e mortes de crianças de cinco a 11 anos vêm crescendo no Brasil. Entre adolescentes e adultos, esses índices estão em queda. Desde o início da pandemia, mais de 11 mil crianças de cinco a 11 anos já foram internadas em razão da Covid. O País já soma 591 mortes pela doença nessa faixa-etária.

O índice de mortes por Covid-19 entre crianças é baixo se comparado ao observado em adultos, mas Werneck ressalta que isso é esperado. “Morrem sempre menos crianças do que adultos. Criança é para estar viva mesmo”, pondera.

O epidemiologista critica a desorganização do governo federal em relação à vacinação infantil e diz que estamos tendo problemas parecidos com aqueles enfrentados no início da campanha de imunização, em janeiro de 2021, como falta de preparo e até de vacinas. “Isso reflete o desmantelamento do Programa Nacional de Imunizações (PNI)”, afirma. O PNI teve a nova coordenadora – Samara Carneiro – nomeada após seis meses com o cargo vago. Procurado, o ministério não comentou as críticas sobre a falta de incentivo à vacinação ou a compra de imunizantes.


Países vizinhos estão mais avançados na vacinação infantil

Em comparação aos países vizinhos que aprovaram o uso de vacinas infantis, o Brasil está atrasado. Até a última sexta-feira, o Chile já tinha vacinado 76,9% das crianças de três a 11 anos. Foram justamente os dados da vacinação no país andino, onde a aplicação da Coronavac em crianças começou em setembro, que embasaram a decisão da Anvisa para liberar o produto na faixa entre cinco e 11 anos no Brasil. Os estudos mostraram a eficácia e a segurança da vacina na campanha chilena.

Na Argentina, 72,3% da população entre cinco e 11 anos de idade tomaram a primeira dose. O Uruguai e a Colômbia também vacinaram mais que o Brasil.


SP e DF lideram; Roraima imuniza menos de 2%

São Paulo e Distrito Federal se destacam entre as unidades da federação com taxas mais altas de imunização — mais de 25% das crianças receberam a 1ª dose até o início da semana. O governo paulista conseguiu acelerar a vacinação porque havia comprado 30 milhões de doses de Coronavac diretamente com o Butantan. Quando a Anvisa autorizou a aplicação em crianças, o Estado tinha em estoque as oito milhões de doses necessárias para imunizar todo o público-alvo.

O secretário de Saúde do Distrito Federal, general Manoel Pafiadache, credita o sucesso da campanha ao grande estoque de Coronavac disponível. Apesar de não ter comprado vacinas diretamente do Butantan, o DF possuía 500 mil doses para aplicar nas crianças. Isso é suficiente para aplicar as duas doses em todo o público-alvo. “Se dependesse das atuais remessas [de vacinas infantis], não conseguiríamos dar conta da demanda”, afirma.

Pafiadache fala que a secretaria reservou duas Unidades Básicas de Saúde (UBSs) em cada região para imunizar as crianças, evitando a confusão entre imunizantes. A partir da próxima segunda-feira, 7, a campanha deverá ser intensificada. O foco é vacinar o máximo de crianças para a volta às aulas, marcada para o dia 14 na rede pública.

Em Roraima, no Norte do País, a situação é bem diferente: menos de 2% das crianças foram vacinadas. A falta de vacinas não é exatamente um problema por lá: há cem mil doses de Coronavac em estoque, o suficiente para começar o esquema vacinal de todas as crianças de seis a 11 anos. O que trava a campanha são as informações falsas, segundo as autoridades. “Tem muita desinformação envolvendo a vacinação infantil. Até os pais que tomaram as três doses estão com medo de vacinar seus filhos”, conta Valdirene Oliveira, coordenadora geral de Vigilância em Saúde do Estado.

Ela diz que o governo tem se mobilizado para tirar dúvidas da população e pretende fazer busca ativa nos locais onde não há procura pelo imunizante infantil. “Estamos em um cenário preocupante, com muitos jovens adoecendo com Covid-19”, ressalta. A volta às aulas preocupa a gestora porque a cobertura vacinal entre os adolescentes também é baixa. “Teremos uma concentração de crianças e adolescentes não vacinados nas escolas”, aponta.

A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), diz que as escolas podem ser usadas como um ponto de apoio importante para a vacinação, tanto para a aplicação de doses quanto para a orientação dos responsáveis. Ela destaca que a vacinação das crianças é essencial para controlar a transmissão do vírus. “O coronavírus foi ficando muito mais transmissível e hoje sabemos que é preciso vacinar mais de 90% da população. A gente não consegue essa alta cobertura sem incluir as crianças”, afirma.

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