Diante do espelho: identidade indígena e colonialidade na Bolívia


Por: Roger Adan Chambi Mayta**

07 de janeiro de 2025

Quem somos nós quando nos vemos diante do espelho? Lembro que um amigo, muito lido e muito corajoso na hora de falar nas reuniões, e que sempre gostou de estar seguro de si, em algumas noites de bebedeira batia na própria cara exclamando: “Por que eu tenho essa cara? Por que eu sou tão feio?”. Os filmes, os programas de televisão, as propagandas e a própria sociedade boliviana o convenceram de que o que era branco ou o mais próximo disso era belo e socialmente aceitável e, claro, seu rosto indígena com feições marcadamente andinas não entrava nesses parâmetros. Por isso repetia à noite, batendo com força no rosto: “Por quê sou tão feio?”. Ele nunca demonstrou aquele ressentimento quando estava sóbrio, sempre bêbado; quando as lágrimas corriam pelo seu rosto, quando dizem que somos mais sinceros.

Infelizmente, essa negação somática (geralmente devido à cor da pele, formato dos olhos, nariz e cabelos) é compartilhada por muitos indígenas que vivem nas cidades da Bolívia. Tentativas culturais e políticas para mudar esse senso comum tipicamente colonial não foram suficientes. É verdade que tivemos um presidente indígena, que temos um vice-presidente indígena e que diversos cargos do governo, hoje, são ocupados por pessoas indígenas, mas não são suficientes. É verdade que existem aymaras ricos que podem se gabar de luxuosas construções e grandes propriedades, assim como existem aymaras, quechuas e guaranis com bacharelado, mestrado e doutorado profissionais. Mas a experiência mostra que o líder indígena que assume uma posição hierárquica na burocracia governamental rapidamente esquece sua comunidade porque já é uma “autoridade nacional”, um “honrado” ou um “ilustre” deputado, sente-se mais próximo do branco, porque o poder estatal historicamente teve essa cor. Agora, o aymara rico mantém suas práticas culturais andinas, realiza rituais de gratidão, organiza festas, compartilha o que acumulou, mas anseia que seus filhos se casem com um homem branco, a ideia de “melhorar a raça” ainda é válida. O bacharel indígena, e mais ainda o doutor, sente-se no alto escalão de seu povo, que muitas vezes considera ignorante. A academia, por mais decolonial que seja considerada, criou em seus profissionais um ar de superioridade e autoridade intelectual para falar pelos outros.

Claro que há exceções, mas é importante dizer: há cada vez mais profissionais indígenas e cada vez mais cadeiras políticas ocupadas por indígenas, mas quando uma destas pessoas está diante do espelho, a negação, a frustração e a vontade de mudar sua pele permanece. A isto deve-se acrescentar a vergonha ainda latente dos sobrenomes indígenas e do lugar de origem: como alguém pode viver livremente na vida cotidiana se nega sua família e sua origem?

Sei que alguns dirão que isso não acontece mais na Bolívia porque somos um Estado Plurinacional e que há mais oportunidades de sucesso porque temos capital étnico, eu também acreditava nisso, mas se abandonamos os espaços de grupos acadêmicos e ideológicos vemos o quão distante está da realidade que grita por verdadeira atenção. A colonialidade está presente desde aqueles pais brancos que dão nomes indígenas a seus filhos para se sentirem mais inclusivos e descolonizadores – enquanto pagam miseravelmente suas trabalhadoras domésticas aymaras -, até aqueles que romantizam a cultura indígena, tornando-se exóticos para lucrar e pedir financiamento estrangeiro.

Nossos avós derramaram suor e sangue para que tenhamos acesso à terra e ao território, para que saibamos ler e escrever, para ocupar espaços políticos e acadêmicos, para que a arte nunca mais seja privilégio de poucos, para que sejamos tratados como qualquer ser humano digno: com respeito. É por isso que minha intenção nestas linhas não é diminuir as conquistas obtidas até o momento, sei que é importante celebrar e acompanhar o progresso de nossos irmãos e irmãs na disputa de cenários que historicamente nos foram negados, mas é preciso também trabalhar contra os fantasmas coloniais enraizados no fundo da autoestima indígena. De que adianta avançar nesses cenários se no final das contas vamos negar o nosso? Criamos e subimos degraus para deixar de ser indígenas? Ou avançamos para demonstrar que o indígena não é um ser petrificado em uma temporalidade específica? Porque somos um devir!

O líder aymara Felipe Quispe Huanca, conhecido como El Mallku, costumava dizer que: “este rosto, este rosto que usamos não podemos mudar, por mais que nos banhemos com cinco sabonetes em um dia não poderemos mudar. Por mais que vamos usar gravata, não vamos mudar, vamos continuar sendo o que somos”. Com essas palavras ele nos ensinou a importância de aceitarmos quem somos, sem preconceitos, sem medo e sem romantizações. Quem somos nós quando nos vemos diante do espelho? Resultado do complexo de inferioridade colonial ou afirmação do que temos de próprio?

(*)Advogado Aymara da Bolívia. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Atua como pesquisador e consultor jurídico, abordando questões relacionadas à crítica jurídica, justiça indígena, estados plurinacionais, direito agroambiental, movimentos políticos indígenas e mídia. Faz parte do Coletivo de Estudos Latino-Americanos de Barcelona (Celab).

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