Direito à licença menstrual em Portugal: uma análise feminista, social e jurídica


Por: Claudia Monteiro

20 de novembro de 2025
Resumo

Este artigo científico debruça-se sobre a proposta de implementação da licença menstrual em Portugal, examinando-a sob uma ótica que entrelaça o direito, a saúde pública, o feminismo e a equidade social. A discussão acerca da licença menstrual, que visa a conceder dias de ausência remunerada a pessoas que sofrem de sintomas incapacitantes durante o período menstrual, transcende a mera questão laboral. Trata-se de um debate profundo sobre o reconhecimento da especificidade biológica do corpo feminino e sua interseccionalidade com a vida profissional e social. Com base em doutrinas feministas, este trabalho argumenta que a ausência de uma política de licença menstrual perpetua a invisibilidade do sofrimento feminino e contribui para a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. A legislação em vigor em Portugal, que trata as ausências por dor menstrual como ausências por doença comum, não só estigmatiza o tema, como também falha em reconhecer a experiência menstrual como uma condição específica que merece tratamento diferenciado. A análise explora a pertinência de legislações como as de Espanha e Japão, ponderando os seus potenciais benefícios e riscos, como o estigma e a discriminação. O objetivo é, portanto, analisar as bases para a criação de uma legislação inclusiva e eficaz em Portugal, que promova a saúde, a dignidade e a equidade das mulheres no ambiente de trabalho e na sociedade.
Palavras-chave: Licença Menstrual, Portugal, Feminismo, Saúde da Mulher, Equidade de Gênero.

Introdução

A menstruação, para uma parcela significativa da população feminina, não se resume a um ciclo biológico regular. Para muitas, é sinônimo de dor intensa, incapacidade e sofrimento. A dismenorreia, nome técnico para as cólicas menstruais, pode ser tão debilitante que chega a comprometer as atividades diárias, incluindo as laborais. Em Portugal, a ausência do trabalho devido a estes sintomas é enquadrada no regime geral da baixa médica, um sistema que, apesar de essencial, não atende às especificidades e às complexidades do ciclo menstrual. Este artigo propõe-se a preencher essa lacuna, examinando a necessidade e a viabilidade da licença menstrual no contexto português.

A invisibilidade da dor menstrual na esfera pública e profissional é um tema caro ao pensamento feminista. Filósofas como Simone de Beauvoir e Judith Butler, ainda que não tenham abordado diretamente a questão da licença menstrual, forneceram as bases para sua compreensão. Beauvoir, ao denunciar a submissão do corpo feminino a uma norma patriarcal que o invisibiliza, abre caminho para se questionar por que razão a dor menstrual, uma experiência intrínseca a milhões de mulheres, é sistematicamente ignorada ou minimizada (Beauvoir, 2014). Butler, por sua vez, ao teorizar sobre a performatividade de género, permite-nos entender como a exigência de uma produtividade ininterrupta e a ocultação das particularidades biológicas femininas são construções sociais que reforçam a norma de um trabalhador idealizado e, em grande parte, androcêntrico (Butler, 1990).

A discussão sobre a licença menstrual é, portanto, uma manifestação contemporânea da luta por direitos que reconheçam a diversidade biológica e a equidade. A ausência de uma política específica reflete uma sociedade que ainda espera que as mulheres se conformem a um padrão masculino de trabalho, onde a biologia é um obstáculo a ser superado em silêncio. Este artigo argumenta que a licença menstrual não é um privilégio, mas sim uma ferramenta de justiça social e de saúde pública, que visa a combater a discriminação.

  1. A Dimensão Histórica e a Invisibilidade da Dor Menstrual

A história do trabalho é, em grande medida, a história da invisibilização e da exploração do corpo feminino. Durante séculos, a participação das mulheres na esfera produtiva foi condicionada por normas sociais e biológicas impostas. A menstruação, frequentemente associada à impureza ou fraqueza, serviu como justificação para afastar as mulheres de determinadas profissões ou para submetê-las a condições de trabalho desfavoráveis.

A transição para a sociedade industrial, ainda que tenha integrado as mulheres na força de trabalho em larga escala, não alterou fundamentalmente essa perspetiva. A norma do trabalhador ideal, aquele que é sempre produtivo, disponível e livre de ciclos biológicos, tornou-se o padrão a ser alcançado. Neste contexto, a dor menstrual foi relegada ao domínio privado, um problema individual a ser gerido em silêncio e de forma invisível. A médica e feminista belga Anne-Lise Verheggen, ao analisar a medicalização do corpo feminino, mostra como a dor menstrual foi, por muito tempo, desvalorizada, sendo considerada um “capricho” ou uma “dor normal” que a mulher deveria suportar sem reclamações (Verheggen, 2018).

A ausência de políticas públicas sobre o tema reflete essa história de invisibilidade. A licença menstrual, em contrapartida, surge como uma reconfiguração do direito laboral, que busca incorporar a experiência feminina como uma realidade legítima e digna de reconhecimento. Ao trazer o debate para a esfera pública, a licença menstrual desafia a norma androcêntrica do trabalho e exige uma reavaliação do que significa ser um trabalhador saudável e produtivo.

2. Análise Jurídica e as Doutrinas Feministas

A legislação portuguesa, ao enquadrar a dismenorreia no regime geral da baixa médica, não distingue a dor menstrual de uma gripe ou de outra doença qualquer. Esta abordagem, embora universalista na sua premissa, falha na prática, pois ignora as particularidades do ciclo menstrual. Uma baixa médica, por regra, requer a visita a um médico, a emissão de um atestado e a consequente burocracia, um processo que pode ser estigmatizante e ineficiente para uma condição que, em muitos casos, é previsível e recorrente.

O direito à licença menstrual, nesse sentido, alinha-se com o conceito de equidade e de justiça de género. Para a jurista e feminista Catharine MacKinnon, a legislação deve ser vista como uma ferramenta para combater a desigualdade estrutural (MacKinnon, 1989). A licença menstrual, ao reconhecer a diferença biológica e seu potencial para gerar desvantagem, procura compensar essa diferença, permitindo que as mulheres tenham as mesmas oportunidades de trabalho e de progressão na carreira, sem serem penalizadas pela sua biologia. É um reconhecimento de que a igualdade formal, que trata a todos de forma idêntica, pode, na verdade, perpetuar a desigualdade material.

Fraser (2019), ao discutir a teoria da justiça, argumenta que a justiça distributiva e o reconhecimento são essenciais para uma sociedade equitativa (Fraser, 2009). A licença menstrual enquadra-se na dimensão do reconhecimento, pois valoriza e legitima a experiência da dor menstrual, retirando-a do domínio do silêncio e do estigma. Por outro lado, a dimensão distributiva é contemplada pela garantia da ausência remunerada, que assegura que as mulheres que sofrem de dismenorreia não sejam financeiramente penalizadas.

3. Desafios e Oportunidades na Implementação em Portugal

A proposta de uma lei de licença menstrual em Portugal, à semelhança do que já acontece em países como o Japão, a Coreia do Sul, a Indonésia e, mais recentemente, a Espanha, não está isenta de desafios. Uma das principais preocupações é o risco de a medida se tornar um fator de discriminação. Críticos argumentam que a licença menstrual pode levar os empregadores a preferirem contratar homens, a fim de evitar as ausências e os custos associados. No entanto, essa preocupação, embora válida, pode ser vista como uma manifestação da mesma lógica patriarcal que o feminismo busca desmantelar.

Em vez de desistir da licença por medo da discriminação, a resposta deveria ser a de combater ativamente a discriminação e de promover a educação e a sensibilização. Além disso, a lei espanhola, por exemplo, estabelece a necessidade de uma declaração médica para a obtenção da licença, o que, de certa forma, mitiga o risco de abuso e de má-fé, ao mesmo tempo que mantém a dignidade da mulher (Lei Orgânica 1/2023, de 28 de fevereiro).

A oportunidade que a licença menstrual oferece a Portugal é a de se posicionar como um País que não apenas respeita, mas também valoriza a saúde e a dignidade de suas cidadãs. A implementação de uma lei deste tipo poderia ser o catalisador para uma conversa mais ampla sobre a saúde da mulher no local de trabalho, incentivando políticas de bem-estar, de flexibilidade e de apoio psicológico. Além disso, ao legitimar o debate sobre a menstruação, a licença poderia contribuir para a desmistificação e para a redução do estigma que ainda hoje a rodeia, promovendo uma cultura de maior abertura e de empatia. A lei, portanto, seria um passo concreto na construção de uma sociedade mais justa e mais equitativa.

Considerações Finais

A proposta de licença menstrual em Portugal é mais do que uma mera alteração legislativa. É um marco no reconhecimento da saúde da mulher como uma questão de direito e de justiça social. Ao longo deste artigo, procurou-se demonstrar que a invisibilidade da dor menstrual é um reflexo de uma sociedade estruturalmente desigual, que historicamente tem ignorado as particularidades biológicas femininas e suas implicações na vida profissional. A licença menstrual, sob uma perspectiva feminista, é uma ferramenta para o reconhecimento e a redistribuição, pilares da justiça social. Ao conceder a mulheres que sofrem de dismenorreia o direito de se ausentarem do trabalho sem prejuízo salarial ou estigma, a lei não apenas melhora sua qualidade de vida, mas também desafia a norma do trabalhador androcêntrico, criando um ambiente laboral mais inclusivo e equitativo. É imperativo que a discussão em Portugal vá além dos receios imediatos e se concentre na oportunidade de construir uma sociedade mais justa. A implementação da licença menstrual seria um passo decisivo nesse sentido, mostrando que o País está comprometido com a dignidade, com a saúde e com a igualdade de todas as suas cidadãs. A lei deve ser concebida de forma a mitigar os riscos de discriminação e a promover a educação, garantindo que a licença seja vista não como um privilégio, mas como um direito fundamental.

(*)Cláudia Monteiro de Araújo é advogada consolidada em Portugal desde 2006, com formação em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa (2002) e um MBA Executivo (2022). Sua extensa jornada acadêmica inclui um doutorado em Direito na Argentina e um mestrado em Psicanálise no Brasil, ambos com previsão de conclusão para 2025. Complementarmente, ela expande seus conhecimentos com um diploma em Engenharia Ambiental, focado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Reconhecida por sua expertise em Direitos Humanos, Cláudia é uma palestrante ativa em conferências e workshops, abordando principalmente as políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica. Sua contribuição intelectual se estende à literatura, com o livro "Violência Doméstica Contra a Mulher e o Risco de Morte", além de artigos científicos como "African Women and Financial Inclusion" e "Mulheres Islâmicas e Educação", e análises de sua obra publicadas no Jornal Generus.

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