Do gado da Paulista ao gado da Amazônia: anistia amplia espaço para crime organizado


Por: Lucas Ferrante

19 de novembro de 2025

No Brasil, multidões são muitas vezes medidas mais pela narrativa do que pela realidade. Sempre há quem veja milhões onde havia milhares. A diferença, quando a ciência entra em cena, é que a emoção cede espaço ao cálculo — e cada cabeça realmente passa a contar. Foi assim na Avenida Paulista no 7 de setembro de 2025, quando a Universidade de São Paulo aplicou um método peculiar, de precisão quase rural, para dimensionar o público bolsonarista que tomou o coração de São Paulo.

As imagens aéreas do ato foram processadas por um software de inteligência artificial conhecido como Point to Point Network (P2PNet). A técnica, já usada em diferentes países, consiste em identificar pontos individuais em uma multidão a partir de padrões de densidade. Como se fosse uma contagem minuciosa, que, em outras circunstâncias, lembraria práticas de monitoramento mais ligadas a rebanhos do que a manifestações políticas. Dessa vez, porém, o objeto era humano: cada presença registrada como pixel, cada indivíduo reduzido a dado estatístico.

O resultado foi uma fotografia precisa do tamanho do evento: 42,2 mil pessoas estiveram na Paulista em seu auge. Nada mais, nada menos. A margem de erro, de 12%, coloca o número entre 37,1 mil e 47,3 mil participantes. É menos do que no ano anterior, quando, em 2024, o mesmo levantamento apontou 45,4 mil pessoas no mesmo cenário. Os números, por mais áridos que possam parecer, ajudam a dissipar o nevoeiro das estimativas exageradas e mostram uma curva descendente de adesão.

Manifestação na Avenida Paulista no último dia 7 de Setembro (Reprodução/Redes Sociais @deltapericles)

É revelador pensar no contraste entre a grandiosidade que a organização dos atos costuma projetar e a concretude fria dos dados. Em tempos de redes sociais, onde um ângulo fechado de câmera pode transformar um grupo em mar humano, a ciência se torna um antídoto contra a ilusão. A contagem da USP não interpreta, não opina, não amplia: apenas traduz o que se vê, com uma precisão que incomoda quem aposta na hipérbole como estratégia política.

O uso dessa tecnologia para medir manifestações é, por si só, um retrato da era em que vivemos. A política deixou de ser apenas disputa de narrativas e passou a ser também campo de observação científica, em que até a quantidade de corpos na rua é analisada com métodos sofisticados. Não é mais suficiente dizer “estava lotado” ou “foi esvaziado”: é preciso confrontar discursos com evidências. Nesse processo, o espaço urbano se converte em laboratório, e a multidão em dado.

Entretanto, a marcha do “gado” bolsonarista pode estar diretamente vinculada a uma nova tentativa de “passar a boiada” na Amazônia — expressão essa, cunhada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, hoje réu por tráfico internacional de madeira e responsável pelo maior desmonte das políticas públicas ambientais do País, de forma deliberada para favorecer grupos do agronegócio, como destacou o periódico científico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge. Nesse contexto, a possibilidade de uma anistia que contemple agentes ligados a milícias e organizações criminosas não representa apenas uma afronta abstrata ao Estado de Direito: ela teria efeitos concretos ao fortalecer redes ilícitas já enraizadas na Amazônia.

Historicamente, tais grupos atuam em associação com o garimpo ilegal, a extração predatória de madeira e a grilagem de terras públicas, inclusive em áreas de proteção ambiental e territórios indígenas como apontado pelo estudo no periódico Land Use Policy. A legalização indireta da atuação de parlamentares vinculados a essas estruturas significaria consolidar a impunidade e ampliar a captura de políticas públicas por interesses criminosos. Na prática, isso se traduziria em maior pressão sobre a floresta e os povos tradicionais, acelerando o desmatamento, a perda de biodiversidade e o avanço da violência rural. Ao transformar milicianos em atores políticos legitimados por uma anistia ampla, abre-se caminho para que práticas ilícitas sejam naturalizadas no processo legislativo, minando as bases de governança ambiental e aprofundando as ameaças à Amazônia em um momento em que sua preservação é vital para a estabilidade climática global.

Tal ação, em sinergia com o chamado “Marco Temporal”, intensificaria diretamente os conflitos fundiários em terras indígenas, impulsionados por milícias e grupos armados pró-agronegócio que têm invadido territórios ocupados ancestralmente e expulsado seus legítimos ocupantes. Como destacou a renomada revista Science em sua edição do último mês, esse processo agrava a vulnerabilidade das comunidades indígenas e ameaça a integridade de seus territórios.

Apesar do gravíssimo clamor antidemocrático por anistia — que favorece diretamente o crime organizado, incluindo a expansão da pecuária ilegal no Estado do Amazonas — há uma ironia fina nesse movimento. O mesmo País que tanto debate a digitalização da vida, que discute inteligência artificial aplicada a diagnósticos médicos e ao reconhecimento facial na segurança pública, vê a tecnologia ser empregada em algo aparentemente trivial: contar quantas pessoas participaram de um ato antidemocrático. No entanto, esse detalhe trivial é central, pois atinge em cheio a credibilidade de discursos que se sustentam na manipulação de números.

É também um lembrete de que a política brasileira tem se movido na fronteira entre espetáculo e realidade. Os atos de rua, com bandeiras, caminhões de som e discursos inflamados, compõem uma mise-en-scène que se alimenta de imagens. Mas, quando essas imagens são reinterpretadas por algoritmos, o espetáculo se dobra sobre si mesmo: o que era construído como narrativa é desmanchado em estatística. E é justamente aí que a metáfora se completa. A multidão, que se vê como mar de gente, é reduzida a contagem minuciosa, quase pastoral, como se cada cabeça importasse menos pelo que pensa e mais pelo espaço que ocupa. A ironia é inevitável: quem se autoproclama gigante nas ruas acaba medido por técnicas que nasceram para monitorar aglomerações de outra natureza. O dado final, apresentado com frieza, não precisa de adjetivos. O número fala por si. Ao fim, a lição é simples: a política pode tentar se reinventar no grito, mas a ciência insiste em trazer os pés de volta ao chão. Diante dos dados da USP, cada narrativa que busca inflar multidões em torno de uma pauta com múltiplos desdobramentos negativos para o país acaba esbarrando no limite inescapável da realidade: cada cabeça, contada uma a uma, revela mais do que mil discursos inflamados e antidemocráticos, que fomentam o crime organizado e agravam a destruição da Amazônia.

(*)Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de Covid-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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