Dossiê aponta que rede criminosa encomendou a morte de indigenista em 2019

Para um irmão da vítima, que pediu para não ser identificado, Bruno não teria morrido se “tivessem feito Justiça” com o assassinato de Maxciel (Reprodução/Estadão)
Com informações do Estadão

ATALAIA DO NORTE (AM) – Um dossiê apresentado à Polícia Federal aponta que o assassinato de um amigo do indigenista Bruno Pereira foi um crime de mando. A morte do também indigenista Maxciel Pereira dos Santos, em setembro de 2019, teria sido encomendada pela rede criminosa de narcotraficantes, pescadores ilegais e garimpeiros que atuam na fronteira com a Colômbia e o Peru. Foi o que denunciaram familiares dele a investigadores em 2021.

Quase três anos depois do assassinato de Maxciel, a Polícia Civil do Amazonas e a Polícia Federal não apresentaram qualquer explicação sobre motivos e autoria do atentado. Familiares do indigenista acreditam que o mesmo grupo que matou Maxciel está por trás dos assassinatos de Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no último dia 5, no Rio Itaquaí, em Atalaia do Norte. Para um irmão da vítima, que pediu para não ser identificado, Bruno não teria morrido se “tivessem feito justiça” com o assassinato de Maxciel.

Familiar de Maxciel Pereira, ativista ambiental e colaborador da Funai assassinado em 2019; dossiê aponta que crime teve mandante.
Familiar de Maxciel Pereira, ativista ambiental e colaborador da Funai, assassinado em 2019; dossiê aponta que crime teve mandante (Wilton Junior/Estadão)

Aos 35 anos, Maxciel seguia de moto com a mulher e a enteada na garupa pela Avenida da Amizade, a principal de Tabatinga (AM), na fronteira com a Colômbia, quando recebeu dois tiros à queima roupa. O indigenista prestava serviços à Fundação Nacional do Índio (Funai), fiscalizava invasões no território indígena do Vale do Javari e tinha a confiança de Bruno Pereira. Chegou a ser o chefe de serviços da coordenação regional da Funai no Javari. Caçula de 11 irmãos, ele morreu no dia em que voltou à cidade depois de um mês de serviço na mata.

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Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como Pelado, é levado pela Policia Federal para indicar o local aonde estavam enterrados os restos mortais do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips.
Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como “Pelado”, é levado pela Polícia Federal para indicar o local em que estavam enterrados os “remanescentes humanos” do indigenista e do jornalista (Wilton Junior/Estadão)

A família do indigenista entregou um cartão de memórias à Polícia Federal com gravações e valores, supostamente, pagos aos executores e nomes de testemunhas dispostas a prestarem depoimento. As suspeitas giravam em torno de Rubens Villar, o “Colômbia”. Ele é um peruano com dupla nacionalidade que exerceria forte influência em toda a região do Alto Solimões. Entregue no início de 2021, o dossiê com as indicações sobre o caso foi elaborado com apoio de indigenistas e entidades que atuam na região. Procuradas pela reportagem, a PF e a polícia de Tabatinga não quiseram se manifestar sobre o caso de Maxciel.

Prejuízo

O dossiê começou a ser preparado diante da falta de respostas das autoridades sobre o assassinato de Maxciel. Familiares refizeram trajetos do indigenista em Tabatinga e Atalaia do Norte em busca de informações que pudessem explicar o crime. A pesquisa resultou num relatório que aponta que a morte do amigo de Bruno foi encomendada por causa dos prejuízos que ele causava com as apreensões e combate ao mercado ilegal de pescados e de caça no Javari controlados por “Colômbia”.

Os peixes raros da Amazônia, como o pirarucu, são somente a ponta de uma extensa cadeia criminosa que envolve pistolagem, lavagem de dinheiro e cartéis de narcotraficantes. O funcionamento dessa rede suspeita foi reconstituído pela reportagem a partir de documentos e entrevistas reservadas com investigadores, advogados, pescadores, ribeirinhos e pessoas com acesso a traficantes de drogas.

Vista aérea de São Gabriel, comunidade no Vale do Javari (AM) visitada pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista Dom Phillips antes de serem assinados.
Vista aérea de São Gabriel, comunidade no Vale do Javari (AM) visitada pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista Dom Phillips antes de serem assinados (Bruno Kelly/Reuters)

Segundo investigações em andamento da polícia, “Colômbia” tem propriedades em Benjamin Constant e na cidade peruana de Islândia. Apesar de toda a influência e das suspeitas que giram em torno dele, a polícia local somente há poucos dias confirmou de quem se trata.

“Colômbia” opera o esquema de venda de peixes que abastece não apenas comércios, hotéis, restaurantes e cafés do Alto Solimões, mas também de cidades mais distantes como Tefé, Manaus e Bogotá. Ele seria um intermediário de cartéis de narcotraficantes. O nome reapareceu nas apurações sobre as mortes de Bruno e Dom, mas a polícia ainda o procura.

Ao longo dos rios da fronteira, “Colômbia” tem seus prepostos. Investigadores e ribeirinhos ouvidos pelo Estadão afirmam que o pescador Amarildo Oliveira, o “Pelado”, seria um braço dele nas comunidades da beira do Itaquaí. Amarildo assumiu a autoria do crime, mas negou trabalhar para traficantes ou atravessadores. Como mostrou a reportagem, no depoimento à polícia ele disse somente que vende “para quem paga melhor”.

Outra suspeita em torno de “Colômbia” diz respeito a uma suposta atuação para lavar dinheiro do tráfico de drogas por meio do comércio local. Uma parte da mercadoria que chega a Tabatinga, vinda de Manaus por balsas, seria destinada por narcotraficantes e vendida a comerciantes a preço muito semelhante ao de custo. Na cidade, as mercadorias rendem pequena margem de lucro. Assim, as quadrilhas lavam o dinheiro, movimentam a economia da cidade e controlam rotas.

Medo

A morte de Maxciel abalou profundamente a família, com casos de depressão e pânico. Os familiares convivem com o medo de represálias e com a ferida aberta por causa da falta de explicações sobre o ocorrido.

A mãe do indigenista lembra que seu caçula sempre foi muito trabalhador e carinhoso. Ela conta que tinha orgulho do “filho que é da Funai”. “É uma angústia muito grande, choro todos os dias. É uma dor muito grande não saber o porquê. Não tenho mais prazer na minha vida. Eu quero justiça. Quero saber porque mataram meu filho e quero saber quem foi o mandante, porque sabemos que teve mandante”, desabafou.

O crime desestruturou a família e trouxe problemas psicológicos. A mulher de Maxciel, que estava em cima da mesma moto com a filha quando o indigenista foi morto, também exige respostas. Com a morte de Bruno, ela reviveu o drama. Agora espera que os responsáveis também sejam punidos. “Já se vão três anos, ninguém foi preso. Só vou ter paz e conseguir dormir quando eu souber o motivo. É um descaso muito grande deixar esse caso para lá”, afirmou ela, cuja identidade também é mantida em sigilo por questões de segurança.

Apesar de todo o contexto do crime organizado na região de fronteira e do histórico de ameaças contra indigenistas na Amazônia, a Polícia Federal informou em uma nota, ainda na sexta-feira, 17, que as mortes de Bruno e Dom não foram encomendadas. “Os executores agiram sozinhos, não havendo mandante nem organização criminosa por trás do delito”, dizia o texto.

O comunicado, atípico, causou estranheza e motivou críticas de várias entidades. Entre elas, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), para a qual Bruno passou a trabalhar após represálias políticas que sofreu na Funai. Neste domingo, a PF mudou o tom e declarou que “as investigações continuam no sentido de esclarecer todas as circunstâncias, os motivos e os envolvidos no caso”.

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