Doutora em Cultura lança livro ‘Animais e Fronteiras’, sobre relações do homem com meio ambiente

Eveline Teixeira Baptistella é Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso e jornalista formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Nascida em Petrópolis, no RJ, atualmente, reside em Tangará da Serra, no MT (Arquivo Pessoal)

João Paulo Guimarães – Da Revista Cenarium

BELÉM, PA – Em outubro deste ano, a REVISTA CENARIUM lançou uma série de reportagens intituladas Cenarium no Pantanal, para falar, com riqueza de detalhes, sobre os crimes ambientais que ocorriam, e ainda ocorrem, na localidade. Para isto, o fotógrafo João Paulo Guimarães, do Pará, desembarcou em Paconé, no MT, e contou com a ajuda da Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea, Eveline Teixeira Baptistella.

Agora, Eveline recebe novamente a reportagem para falar sobre o lançamento do seu livro: ‘Animais e Fronteiras’, que explica sobre a relação de animais humanos e não humanos.

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Confira a entrevista na íntegra:

REVISTA CENARIUM: Professora, o livro é incrível. Ainda não terminei, mas já estou quase no fim em quatro dias de leitura. Vindo de um universo acadêmico que geralmente tem um éthos tão técnico cientificamente, você optou por uma escrita bastante acessível e pedagógica. Como se deu essa escolha da escrita?

EVELINE: Eu fico muito feliz em saber que você está gostando.  Eu sou formada em jornalismo e trabalhei muitos anos em redação, especialmente com jornalismo ambiental e científico. Nessas áreas, o mantra é se fazer entender, né?  Desde o começo, eu tive como objetivo escrever com uma linguagem que fosse acessível aos mais diferentes públicos.  Nosso grande desafio, como cientistas, é justamente democratizar o conhecimento produzido na academia.  Daí, a decisão de falar “simples”.

REVISTA CENARIUM: Professora, fale sobre esse passeio literário pela história do relacionamento do homem com os animais de estimação e os não domesticados.

O livro surgiu de uma pesquisa de mestrado e minha proposta foi percorrer a cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, observando as relações entre animais humanos e não humanos.  Discuto a evolução histórica dos nossos relacionamentos e como ciência e afeto se misturam na hora de conceder direitos aos animais não humanos. Achei que o trabalho se concentraria especialmente nos animais de estimação, mas tive a grande surpresa de encontrar muitos animais ditos silvestres coexistindo com humanos e vivendo em ambientes urbanizados – como jacarés, tucanos, araras, tamanduás.

Livro fala sobre relação humana com animais (Reprodução/ Internet)

O mais impressionante é que, em todos os casos, verifiquei que o discurso científico é utilizado para dar voz aos animais no plano jurídico e legislativo. Contudo, no domínio do cotidiano, o que leva as pessoas a protegerem ou maltratarem um animal está intimamente ligado com o grau de afeto que elas sentem por aquele indivíduo.  Dessa maneira, vemos que os animais que logram conquistar o carinho e a simpatia dos humanos conseguem melhores condições de vida. Um exemplo bem recente é a chamada Lei Sansão, que alterou a Lei de Crimes Ambientais (LEI no 9.605).  A mudança prevê penas mais severas para quem maltratar cães ou gatos, que são animais de estimação. Para crimes contra outras espécies, prevalece a punição mais leve.

REVISTA CENARIUM: Porfessora Eveline, o livro fala sobre as relações humanas dos animais humanos com os animais não humanos. Por que foi necessária essa distinção? E ela foi criada por você ou já existia?

EVELINE: Nos estudos animais, área de pesquisa em que trabalho, usamos a terminologia “animal humano” e “animal não humano” justamente para reafirmar que somos todos animais e, ainda assim, encontrar uma maneira de conversar com o senso comum.   Isso foi algo que encontrei no campo desde o início da pesquisa: os humanos não se consideram animais! É uma construção social. Quando nos “separamos” das outras espécies e nos colocamos num patamar “acima”, abrimos espaço para afirmar nossa superioridade e justificar a exploração e a crueldade contra os animais.  É preciso reafirmar, constantemente, nossa posição de animais para nos afastar dessa falsa supremacia. Mas como isso ainda é confuso na cabeça das pessoas, existe essa terminologia. 

REVISTA CENARIUM: Nós humanos estamos preparados para essa quebra de paradigmas advinda da intervenção humana no meio ambiente?

Levando em conta que as catástrofes ambientais provocam grande perda de habitats, naturalmente teremos uma aproximação muito maior de animais silvestres buscando espaços em que possam sobreviver. O que ocorre é que, nas cidades, não estamos preparados para o que muitos chamariam de “invasão”.  Isso pode ocasionar conflitos nos quais os animais não humanos, fatalmente, acabam perdendo. 

EVELINE: O que notei na pesquisa é que os animais silvestres que estão vivendo em áreas urbanas têm o seu sofrimento e  suas dificuldades, invisibilizadas.  Aqui no meu estado, Mato Grosso, vemos inúmeras notícias de animais silvestres encontrados dentro de casas, quintais. São tamanduás-bandeira, tatus, macacos, grandes felinos.  É muito comum que isso seja tratado de forma alarmista, como um risco para os humanos, ou no registro do pitoresco, como algo engraçado. Na verdade, estamos lidando com criaturas em sofrimento, buscando resistir à inúmeras agressões, e que merecem respeito.  Precisamos nos preparar para oferecer a elas um tratamento minimamente adequado, adotando uma postura de responsabilidade. 

REVISTA CENARIUM: Agora com as queimadas no Pantanal, especificamente, nós vimos uma corrida de  profissionais de diversas áreas  se dirigindo para locais como a Transpantaneira e Porto Jofre para atendimento e resgate animal. Nós podemos dizer que os animais foram o carro chefe para sensibilizar a opinião pública sobre as queimadas?

Voluntário alimenta filhote de macaco salvo de área consumida pelo fogo no Mato Grosso (João Paulo Guimarães/ Revista Cenarium)

EVELINE: Com certeza. Nós estamos realizando uma pesquisa nesse momento que trata justamente da cobertura que a imprensa fez sobre as queimadas/incêndios no Pantanal.  Apesar do trabalho estar bem no início, já identificamos que os impactos causados aos animais não humanos foram o maior destaque dessa tragédia. Além disso, as pautas sobre essa temática foram fundamentais para fomentar doações que ajudaram a manter voluntários no local e pressionar o poder público a agir. Veja como é uma teia complexa. Por um lado, as ações humanas estão levando a todo esse sofrimento dos bichos. Por outro lado, há uma grande comoção social em torno desses episódios.  Daí, vemos o quanto o ser humano ainda se dissocia psicologicamente dos impactos que provoca na natureza. 

Foi notável que, proporcionalmente, pouco se falou dos problemas que os seres humanos enfrentavam no Pantanal.  Sabemos que jornalistas, voluntários e moradores da região passaram por grandes dificuldades e correram inúmeros riscos.  Mas o sofrimento das outras espécies estava muito evidente nesse episódio e acho que os próprios jornalistas se emocionaram tanto que reforçaram essa questão em suas reportagens.  As imagens impactantes, de animais queimados e feridos, bem como as histórias de humanos que se deslocaram para o Pantanal para ajudar esses indivíduos deram a tônica da cobertura.  Acho que dão sinais de um futuro em que a cooperação entre espécies será a única maneira de salvar os animais que ainda conseguirem sobreviver no planeta. 

REVISTA CENARIUM: Na situação das queimadas assim como a Pandemia, há um esforço óbvio do Governo Federal em desacreditar a tragédia do fogo no País assim como a Pandemia e sua seriedade como risco para a nação. Qual o papel do jornalista no país das fake news veiculadas por whatsapp?

EVELINE: Sinto que uma parcela cada vez maior da população vem compreendendo as consequências de uma relação irresponsável com a informação e como isso se reflete não apenas nos relacionamentos pessoais, mas em toda a comunidade. As pessoas me chamam de otimista, mas acho que esse cenário reforça a importância do jornalismo e da formação em jornalismo.  Para além das fake news, nossa profissão sofreu muitos golpes, especialmente a partir da premissa de que basta “escrever bem” ou conhecer um assunto em profundidade para ser jornalista. 

Temos visto que a realidade é bem diferente, porque foi esquecido um domínio fundamental: a ética. O que faz do jornalismo um patrimônio da sociedade é isso.  Sempre digo aos meus alunos que nosso trabalho tem potencial tanto para salvar quanto para destruir vidas. A linha divisória é justamente a consideração ética. Não basta ter bom texto se você não olhar para as questões e os indivíduos de forma ética e responsável. 

O papel do jornalista, acredito, é sempre se perguntar: qual o impacto dessa notícia?  Eu sempre cito o caso da febre amarela no Brasil porque é um episódio que estudei de maneira aprofundada.  Tão logo começaram as notícias sobre o surto, vimos que começaram a matar macacos em diversas regiões do país, por medo de que eles transmitissem a doença.  Em momento nenhum, a imprensa disse que os símios tinham esse papel, mas como isso não era claramente explicado nas reportagens, as pessoas começaram a temer a presença de macacos. Os jornalistas esqueceram que esse poderia ser um dos impactos da cobertura porque é muito raro haver consideração ética quando se trata das vidas dos animais não humanos.  O resultado é que a imprensa como um todo precisou esclarecer o verdadeiro papel dos símios no ciclo da doença.  Então, mais do que buscar informações corretas, dados bem apurados, nós temos também que valorizar e fomentar esse caráter ético da cobertura jornalística profissional.

REVISTA CENARIUM: Quais seriam os impactos, políticos, sociais e ambientais de uma decisão como a do Ministro Salles, de implantar uma Lei da Mordaça censurando os órgãos IBAMA e ICMBio durante uma calamidade como essa das queimadas?

EVELINE: Os jornalistas precisam de fontes para realizar seu trabalho.  Não dá para se apoiar só em fontes oficiais, mas também não dá para ficar sem elas, até porque órgãos como IBAMA e o ICMBio têm profissionais de referência, que trazem conteúdo relevante para as reportagens. Um silenciamento sistemático acaba sendo um meio de “sufocar” as pautas.  Não tem informação suficiente, a pauta cai. Não tem quem fale, a pauta cai. Pensando nos impactos a partir de um jornalismo declaratório, apoiado só em fontes oficiais e em releases, o resultado seria o “desaparecimento” de temas impactantes e polêmicos, que precisam ser divulgados para a sociedade. Também podemos prever um futuro em que informações incompletas, tendenciosas ou até mesmo distorcidas acabem servindo de matéria-prima para as notícias, ampliando ainda mais a desinformação e minando o jornalismo em sua base.

Contudo, o que tenho observado na prática é um bom número de jornalistas driblando essas cortinas de fumaça, ampliando seu leque de fontes, ouvindo não apenas cientistas, mas também as comunidades tradicionais. Além disso, muitos são bem sucedidos fazendo um trabalho de convencimento dentro dos órgãos para conseguir informações, mesmo que seja por meio de off.  Mas vale lembrar que não é nem de longe o ideal, porque os servidores públicos deveriam ter liberdade para falar sobre temas que dominam e a sociedade como um todo deveria ter acesso a informações que são de interesse público. 

REVISTA CENARIUM: Você acredita que a imprensa, de forma  geral, romantizou a calamidade das queimadas como uma novela a espera de um final feliz sem explorar a ciência dos fatos ou os interesses políticos e econômicos?

EVELINE: Nessa primeira amostra da pesquisa, nós vimos que a questão política e econômica foi menos abordada que o drama dos animais não humanos.  Isso pode levar a uma percepção de que o Pantanal existe num universo isolado e descontextualizado, num domínio de “natureza pura”.  Inclusive, como falei antes, pouco se falou sobre as comunidades locais.  Como exemplo, cito outra pesquisa, que fiz com turistas que visitavam o Pantanal.  Encontrei muitas pessoas que se surpreendiam ao descobrir que havia humanos vivendo na região.  Outras se chocavam ao ver rejeitos de mineração em Poconé, município do interior de Mato Grosso, ou até mesmo ao encontrar lixo nos rios pantaneiros, como garrafas pet.  A ideia geral é que o Pantanal seria um paraíso isolado, no qual os problemas derivados da ação humana não chegam.  A mídia tem um papel importante na construção desse imaginário e ele é perigoso, pois é necessário que as pessoas entendam o Pantanal dentro de um contexto em que está interligado ao que acontece no planalto e no qual sofre agressões constantes.

No caso dos incêndios/queimadas, ao tratar dos animais queimados e focar principalmente nas fontes científicas, a imprensa conseguiu gerar uma grande sensibilização em relação ao tema.  Isso levou a um segundo momento, em que os problemas políticos e econômicos ganharam espaço.  Tivemos um forte debate sobre a teoria do boi bombeiro, a questão das hidrelétricas, a expansão da pecuária e de outras atividades econômicas na região.  Poderíamos avançar mais no entendimento de que o Pantanal é uma paisagem cultural, no qual animais humanos e não humanos convivem há séculos, mas a própria audiência tende a se conectar mais com o que fala ao seu emocional.  Temos aí um trabalho que a imprensa precisa abraçar, de reforçar as ligações entre todas as formas de vida e das implicações de nossas ações como um todo. Nosso estilo de vida hiper-consumista tem um custo ambiental que ainda é pouco reconhecido e exposto pela mídia, até porque nós sabemos que o modelo de manutenção dos veículos de imprensa se apoia majoritariamente na venda de publicidade.

Onça-pintada encontrada morta à beira da estrada que dá acesso ao Sesc Paconé, no Mato Grosso (João Paulo Guimarães/ Revista Cenarium)

Recentemente temos visto uma espécie de campanha velada onde figuras públicas e emissoras internacionais propagam na contra mão da ciência que o Pantanal Rebrota ou que vai Rebrotar. Temos lido previsões absurdas que estimam o Rebrotar em meses.

REVISTA CENARIUM: Fala para nós sobre os perigos desse tipo de campanha fake que tenta minimizar os impactos de longo prazo de uma tragédia como essa?

EVELINE: É verdade.  Estamos identificando um discurso difuso tanto em redes sociais quanto em alguns veículos de imprensa propagando essa ideia. Ela é poética, bonita.  Fala de resiliência, concede ao Pantanal uma força, uma capacidade de superar as adversidades. Contudo, tirando esses elementos de cena, o que fica é uma ideia extremamente problemática e perigosa. Você pode até olhar uma planta e ver que ela está rebrotando, isso rende fotos bonitas.  Você pode ver animais retomando territórios e fazer vídeos fantásticos. Mas isso camufla problemas graves, causados pela ação humana.

A verdade é que, em termos ecológicos, ainda não é nem possível estimar como será e como se dará a recuperação. Muito menos quanto tempo vai levar.  Hoje mesmo temos animais passando fome e dependendo de oferta de alimentos por humanos.  Temos que considerar ainda que a região está vivendo uma seca extrema. Quem nos garante que não teremos outra calamidade como essa no ano que vem?  A quantas tragédias o Pantanal terá que resistir sozinho?

Quando você fala que o Pantanal é forte e vai se recuperar isso gera um alívio de consciência para nós, seres humanos.  As pessoas pensam: temos um quadro de incêndios, de desequilíbrio ecológico, mas está tudo bem, porque a natureza é poderosa e resiste. Com isso, os verdadeiros problemas não são encarados de frente. As dificuldades que o Pantanal e suas populações – humana e não humana – vão enfrentar estão só começando. Não é hora de olhar para o outro lado, não é hora de nos tranquilizarmos com discursos poéticos. Precisamos que a sociedade como um todo entenda o tamanho da tragédia e a importância de ações continuadas para recuperação e proteção do bioma.  Temos que assumir nossa responsabilidade, entender que nossas ações individuais também têm impacto na crise ecológica. Mais do que isso, precisamos também nos comprometer para além dos ativismos digitais, mudando hábitos e atitudes.  Infelizmente, o discurso da resiliência, do “rebrota”, deixa tudo na conta da “natureza” e promove um conforto moral ilusório.

No Pantanal, animais resistem mesmo em meio ao cenário de destruição (João Paulo Guimarães/ Revista Cenarium)

REVISTA CENARIUM: Vai haver uma continuação do livro? Quais são seus planos pra publicações futuras?

EVELINE: Olha, eu passei os últimos cinco anos pesquisando no Pantanal, fiz uma tese sobre os animais não humanos no turismo da região.  Meu plano inicial era transformar a pesquisa em livro, focando nas relações entre animais humanos e não humanos. Nós temos um cenário incrível, de animais não humanos atuantes no turismo.  Eu poderia escrever mais dez páginas só sobre isso!  Temos o caso das onças-pintadas em Porto Jofre e como elas demonstram uma inteligência incrível ao lidar com diferentes abordagens humanas. Temos a ascensão das ariranhas como “produto” turístico, com evidências de mudança de comportamento provocada pela pressão ambiental. Entretanto, vieram os incêndios/queimadas e confesso que isso me deixou bastante desanimada.  Muitos locais em que estive foram consumidos pelas chamas. Muitos animais que encontrei agora estão mortos. No momento, reorientei meu trabalho para a cobertura midiática da tragédia e penso em escrever cada vez mais sobre a inserção dos animais não humanos na esfera de consideração ética da imprensa. Nós precisamos descer desse pedestal imaginário, até para que possamos continuar existindo enquanto espécie – pois a verdade é que quando destruímos o que nos resta de natureza, quando destruímos outras formas de vida, também estamos pavimentando o caminho para o nosso próprio extermínio.

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