Ecos de um genocídio chamado Marco Temporal


Por: Inory Kanamari

06 de novembro de 2024
Mulheres indígenas protestam contra o Marco Temporal em Brasília (Antônio Cruz/Agência Brasil)
Mulheres indígenas protestam contra o Marco Temporal em Brasília (Antônio Cruz/Agência Brasil)

Ka tücüna naina. Frase escrita na gramática kanamari e traduzida para o português significa: “Olá, leitor (a)”.

Ao longo da história, a humanidade tem sido espectadora de guerras, injustiças e crimes que seriam difíceis de esquecer, não fossem os esforços da sociedade em fechar os olhos para tais atrocidades. No Brasil, assim como em muitas partes do mundo, crimes contra grupos étnicos ocorreram em abundância, mas, curiosamente, com o passar do tempo, esses eventos foram minimizados. Criou-se uma narrativa confortante de que essas perseguições pertencem ao passado, sustentada por promessas de reparação. No entanto, só o tempo dirá se essa reparação é genuína ou apenas mais uma fábula bem contada.

O Holocausto, sem dúvida, representa uma das mais trágicas e sombrias páginas da história da humanidade, marcado pela perseguição sistemática e pelo assassinato de cerca de 6 milhões de judeus europeus pelo regime nazista e seus cúmplices. Esse genocídio, que se desenrolou entre 1933 e 1945, culminou em uma das maiores atrocidades já registradas. E até hoje, a humanidade se pergunta como foi possível permitir tamanha barbárie.

Enquanto isso, no Brasil, assistimos ao nosso próprio “show de horrores”: o genocídio dos povos indígenas. Esse processo começou em 1500, com a chegada dos colonizadores, e a população indígena, que variava de 2 a 5 milhões, começou a desaparecer rapidamente. Hoje, segundo o Censo 2022 do IBGE, contamos com apenas cerca de 1,7 milhão de indígenas autodeclarados, ou seja, apenas 0,83% da população total. Isso significa que mais de 3 milhões de indígenas sumiram ao longo dos séculos. E o que mais impressiona? O silêncio ensurdecedor que envolve essa questão. Práticas efetivas para combater os etnocídios? Isso parece estar completamente fora de moda.

E, pasmem, a história de perseguição aos judeus, que tanto choca o mundo, se repete sob uma legalidade duvidosa. Um exemplo claro é o infame “Marco Temporal”, que, se fosse justo, deveria ser renomeado para “Marco Demonial”.

O “Marco Temporal”, também conhecido como a tese de Copacabana, surgiu no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo STF em 2009. Em uma PEC que mais se assemelha a um roteiro de filme de terror, propõe-se que os direitos à terra dos indígenas sejam reconhecidos apenas para aquelas comunidades que estavam sob posse do território em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. É, de fato, um verdadeiro espetáculo de como se pode ignorar a história com uma desfaçatez digna de aplausos.

Desde 2019, a questão voltou à tona com o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que coloca em disputa o reconhecimento de uma área reivindicada pelos indígenas do povo Xoclengues, na Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina. O STF reconheceu “repercussão geral” ao caso, ou seja, a decisão a ser tomada terá impacto em todo o judiciário brasileiro. E nós, povos originários, continuamos vivendo um verdadeiro suplício.

É crucial que os ministros do STF compreendam que os povos indígenas já estavam aqui muito antes da chegada dos colonizadores. Seus direitos à terra, mesmo que não demarcados, são anteriores a essa data. O Poder Judiciário, por sua própria obrigação constitucional, deveria reconhecer esses direitos. Mas, em vez disso, somos forçados a participar de conciliações que, sejamos francos, mais se assemelham a um teatro para dar uma aparência de legalidade a um dos maiores crimes contra a humanidade já cometidos neste país.

É fundamental destacar que o STF nos convida a “conciliar” não porque está agindo por benevolência ou cumprindo à risca os dispositivos constitucionais, mas sim porque a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) assim o exige. Essa convenção define claramente os direitos dos povos indígenas e tribais, impondo aos governos a obrigação de realizar consultas através da CPLI (Consulta Prévia Livre e Informada). Ignorar essa exigência não é apenas uma falta de cortesia; pode resultar em consequências sérias, como a avaliação de que o Brasil está, de fato, desrespeitando os termos da convenção. Portanto, sentar à mesa é mais uma formalidade do que um gesto genuíno de consideração.

Essa tentativa de negociar direitos que são inegociáveis revela a falência de um sistema de justiça frequentemente dominado por uma elite branca que parece mais preocupada com interesses econômicos do que com a proteção de direitos fundamentais.

Os erros do passado se repetem, e nós, povos originários, somos pressionados a aceitar o malfadado “Marco Temporal”. O que nos resta? Protestar contra a PEC do Marco Temporal, que surge como um verdadeiro espírito maligno, ameaçando ainda mais a existência dos indígenas que lutam para, no mínimo, continuar vivendo.

Fala-se tanto em “Marco Temporal”, mas raramente se questiona quais as consequências negativas que a aprovação da PEC trará para a história do país. Acreditamos que, um dia, o Judiciário se lembrará da oportunidade que teve de mudar a história para melhor, mas não a aproveitou. Restará apenas vergonha para as próximas gerações por toda a luta que os povos indígenas foram obrigados a travar em defesa de seu território.

Sim, é necessário diálogo entre os povos originários e o STF, mas esse diálogo não deve ter como objetivo negociar nossos direitos constitucionais. Enfrentamos conflitos persistentes, disfarçados por uma aceitação superficial e uma inclusão meramente simbólica que visa agradar o olhar internacional. Essa demagogia oculta um racismo profundo que permeia todos os setores da sociedade, com os grupos étnicos sendo as principais vítimas.

Portanto, é evidente que o Brasil e seu sistema judiciário não superaram a crise de identidade de seu corpo social. A impressão que se tem é a de que há súditos, e não cidadãos. A dificuldade do Poder Judiciário em reconhecer nossa existência e nossos direitos, que antecedem a 1988, revela uma clara falta de compreensão sobre história, reparação e a essência da humanidade comum.

Bapo ikoni. Até a próxima pauta.

Leia mais: Resistência dos Kanamari: um grito por reconhecimento e justiça
(*) Inory Kanamari é articulista da Cenarium e a primeira advogada indígena do povo Kanamari. Está como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM, vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB, atuou como Consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena Nheengatu no Conselho Nacional de Justiça, ativista, poetisa, membra na Academia de Letras, Ciência e Cultura da Amazônia (Alcama).
(*) Esse conteúdo é de responsabilidade do autor.

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