Edital da PGE revela analfabetismo social e cultural no Amazonas


Por: Inory Kanamari

19 de novembro de 2025

Como advogada indígena, com vasta experiência e comprometida com a luta de meu povo, é impossível não destacar a gravidade da exclusão que enfrentamos em diversos espaços, incluindo o sistema jurídico, onde a presença e a atuação de profissionais indígenas são sistematicamente ignoradas. O estado do Amazonas, reconhecido como o mais indígena do Brasil, paradoxalmente, é também um dos mais racistas e preconceituosos quando se trata de reconhecer a nossa existência e garantir a nossa inclusão.

Ainda hoje, como mulher indígena e advogada, sou forçada a me deparar com uma realidade absurda, que jamais pode ser ignorada. O objetivo deste texto é dar visibilidade ao apagamento histórico, social e cultural que sofremos, especialmente no que diz respeito à exclusão de profissionais indígenas. E é, particularmente, a Procuradoria Geral do Estado do Amazonas (PGE/AM) que merece destaque neste contexto.

No dia 27 de janeiro de 2025, a PGE publicou o Edital XI do Exame de Seleção para o Programa de Residência Jurídica, mas o que mais choca é a omissão vergonhosa das vagas não destinadas a profissionais indígenas, um reflexo claro do analfabetismo social, cultural, histórico e jurídico que permeia as esferas governamentais e jurídicas do estado.

No edital, a não citação de vagas destinadas a pessoas negras e indígenas soa como uma tentativa de acobertar a exclusão, mas, na prática, ela evidencia uma política institucional que nega a nossa presença em espaços de poder. Trata-se de uma clara demonstração da persistente política de dizimação e invisibilização dos povos indígenas, uma política que está muito longe de ser apenas uma negligência, mas sim uma ação deliberada para manter esses espaços restritos às elites brancas e privilegiadas.

O que nos leva a questionar: qual o real conhecimento jurídico da Procuradoria do Estado sobre as questões raciais e sobre a importância da inclusão, da representatividade e da valorização da diversidade, tanto no âmbito jurídico quanto em toda a sociedade?

É minha responsabilidade como advogada indígena expor e questionar essa exclusão intencional, que está enraizada não apenas no executivo, mas também no legislativo e no judiciário do Amazonas. A classe dominante, que ocupa os cargos mais altos de poder no estado, segue ignorando a existência e a contribuição dos povos indígenas, negando sua herança e mantendo-se isolada de qualquer reflexão sobre a pluralidade cultural e social que compõe o estado.

A questão central é: por que não vemos profissionais indígenas nos espaços de poder, nas universidades, nas instituições jurídicas e nas esferas de decisão? A resposta é simples e dolorosa: não é porque não existimos, mas sim porque há uma política velada de invisibilidade que nos exclui de forma sistemática e cruel.

Recordo-me, com indignação, de uma experiência recente, quando uma grande empresa concessionária responsável pelos serviços de água, coleta e tratamento de esgoto, entrou em contato comigo em 2024 para me convidar a palestrar para seus funcionários.

O motivo? A empresa estava contratando sua primeira funcionária indígena, em 2024, e queria “mostrar” sua suposta inclusão. Contudo, o mais alarmante não foi o fato de essa empresa estar celebrando um feito tão insignificante em termos de inclusão, mas sim a surpresa deles ao saberem que, como palestrante, cobro por meu trabalho.

Essa situação, infelizmente, reflete a mentalidade colonialista e discriminatória que ainda predomina no Amazonas, onde o trabalho dos indígenas só tem valor se for realizado de forma gratuita – uma verdadeira escravidão moderna.

É necessário expor essa realidade para que a sociedade manauara, os governos e as elites locais compreendam o racismo, o preconceito e a xenofobia que permeiam suas atitudes diárias. A exclusão de profissionais indígenas nos espaços de poder e nas oportunidades de trabalho é um reflexo de uma sociedade cruel e hipócrita, que lucra com a nossa cultura, com nossas artes, mas que nos nega o direito ao reconhecimento, à educação, à saúde e ao emprego.

Assim, o que estamos vivendo é um processo de extermínio social, cultural e profissional, no qual os povos indígenas são marginalizados, silenciados e invisibilizados. O Amazonas, que é o estado com a maior população indígena do Brasil, tem a obrigação de reconhecer e valorizar seus profissionais, de quebrar as barreiras da exclusão e de garantir, de fato, a inclusão de nossos povos nos espaços onde nossas vozes precisam ser ouvidas.

A atitude da PGE/AM, ao excluir os indígenas de forma sistemática, é uma afronta à nossa dignidade e aos nossos direitos. Ela demonstra, de maneira clara, que, para aqueles que estão no poder, nossa existência e nosso trabalho não têm valor, como se nossa luta e nossa cultura fossem irrelevantes para o desenvolvimento e para a construção de um futuro mais justo e igualitário para todos.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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