EDITORIAL – O escalpelamento e a intersecção da dor em mulheres ribeirinhas
Por: Paula Litaiff
11 de outubro de 2025
“A gente perdeu o cabelo, mas não perdeu a vida.” A frase de Iolanda Ferreira, sobrevivente de escalpelamento, resume o que a pesquisadora Flávia Cristina Silveira Lemos, da Universidade Federal do Pará (UFPA), define como a produção de resistência em meio à dor. Em seus estudos sobre o tema, Lemos identifica que, na Amazônia, o escalpelamento vai muito além de um acidente fluvial: é a intersecção de classe, cor e gênero, e revela o abandono histórico das populações ribeirinhas.
Ao observar os relatos da reportagem da nova edição da REVISTA CENARIUM, é possível ver, nas trajetórias de Regina Formigosa, Iolanda Ferreira, Suellen Batista, Franciane Campos e Raimunda dos Santos, a concretização das reflexões de Lemos. Cada mulher encarna uma luta que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva.
Regina costura perucas como quem costura dignidades; Iolanda transforma sua cicatriz em voz política; Suellen ergue-se do trauma para curar outros corpos. São falas de resistência que subvertem a lógica da vitimização e revelam um saber situado, produzido pela experiência da dor, da solidariedade e da reinvenção de si.
Reconhece-se o escalpelamento como um marcador de gênero e território, um acontecimento que ultrapassa o âmbito do acidente e alcança o campo político. A violência que arranca o couro cabeludo dessas mulheres é a mesma que lhes nega o direito à prevenção, ao atendimento digno e à reparação. O Estado, ao falhar na garantia de políticas efetivas, perpetua um ciclo de desumanização no qual o corpo feminino ribeirinho é mutilado duas vezes: primeiro, pela máquina que o fere; depois, pela omissão institucional que o ignora.
O pensamento sobre a resistência dessas mulheres ecoa como manifesto: o escalpelamento não é somente uma mutilação física, mas um espelho das desigualdades que estruturam a Amazônia contemporânea. Cada cicatriz, cada peruca costurada, cada olhar que reaprende a se ver no espelho é uma denúncia da violência institucionalizada e, ao mesmo tempo, um gesto político de resistir. Dar visibilidade a essas histórias, como faz a reportagem da CENARIUM, é também devolver às vítimas o direito à fala, um direito que o País lhes deve.
O assunto foi tema de capa e especial jornalístico da nova edição da REVISTA CENARIUM. Acesse aqui para ler o conteúdo completo.
