Em apoio aos povos indígenas, deputados visam derrubar vetos de Bolsonaro

Os povos indígenas são os mais prejudicados em decorrência da pandemia de Covid-19. Vetos são injustificáveis e desumanos, diz CNBB. (Reprodução/Internet)

Márcia Guimarães – Da Revista Cenarium*

MANAUS/BRASÍLIA – “Vetar direitos tão essenciais demonstra uma política de ódio”. A declaração é da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), uma das parlamentares que articula a derrubada dos vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ao texto da Lei nº 14.021/2020, que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas.

No início deste mês, Bolsonaro vetou grande parte do texto aprovado por deputados e senadores, excluindo pontos essenciais, como acesso à água potável. Os vetos causaram indignação nas lideranças indígenas e sociedade civil e agora, a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas busca apoio para derrubá-los.

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O Projeto de Lei 1.142/2020, que deu origem à lei, teve como autores a deputada federal Rosa Neide (PT/MT) e mais 23 deputados federais. O texto do PL foi elaborado com a participação de organizações e movimentos sociais, sendo aprovado pela Câmara no dia 21 de maio e pelo Senado quase um mês depois, em 16 de junho. Passaram-se 20 dias até a sanção presidencial. E, de acordo com parlamentares, os vetos foram uma surpresa porque o PL foi aprovado com apoio da base do governo e dos aliados do chamado “centrão”.

A deputada Joenia Wapichana, que é a primeira mulher indígena eleita para a Câmara Federal e foi a relatora da proposta na Casa, manifestou a necessidade de reverter os vetos, já no dia 8 de julho, quando a lei sancionada foi publicada no Diário Oficial da União (DOU).

“Queria me manifestar e lamentar os vetos que o presidente Bolsonaro fez hoje em relação ao PL 1142. Esse projeto foi aprovado por unanimidade nessa Casa, foi aprovado por unanimidade no Senado, com a proposta de atender essa emergência e o pedido de socorro aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. E vetar direitos que são tão essenciais para qualquer um da população brasileira demonstra uma política de ódio. É lamentável, porque isso significaria salvar vidas”, afirmou a deputada indígena, durante sessão.

Joenia afirmou ainda que a maior parte do texto foi retirada e que a nova lei poderia contribuir para o enfrentamento da Covid-19 nas comunidades indígenas. “É extremante necessário que a gente reverta essa situação”, disse.

Veja os 16 pontos vetados

Além do veto ao acesso universal à água potável, entre os trechos vetados estão a distribuição gratuita de materiais de higiene, de limpeza e de desinfecção para as comunidades indígenas.

Também foi vetado o dispositivo que obrigava a União a distribuir cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias. Foi vetada, ainda, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de Unidade de Terapia Intensiva (UTI); aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea; distribuição de materiais informativos sobre a Covid-19; e pontos de internet nas aldeias.

Para justificar os vetos, o Executivo argumentou que o texto da lei criava despesa obrigatória ao poder público sem demonstrar o impacto orçamentário e financeiro, contrariando a Constituição.

O deputado federal, José Ricardo (PT-AM), que participou da elaboração do PL, informou à REVISTA CENARIUM que a Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas já iniciou conversas com os parlamentares que apoiaram a proposta.

Segundo ele, será necessário um diálogo com o Senado também, porque os vetos são apreciados na reunião conjunta do Congresso. O parlamentar disse ainda que os vetos a esse projeto não estavam na pauta da reunião conjunta prevista para a última semana. “Vamos continuar insistindo que coloquem, imediatamente, em pauta esses vetos. Ela ajuda a melhorar a imagem do Brasil no exterior, onde eles têm conhecimento do desmatamento, das queimadas, das invasões de terras indígenas, e isso afeta as relações com o exterior e a vinda de recursos para essas áreas”, afirmou.

José Ricardo revelou que na segunda passada, dia 20, a frente parlamentar se reuniu com sua coordenadora, a deputada Joenia Wapichana, no sentido de trabalhar no Congresso para colocar os vetos em pauta os mais breve possível e ter o apoio para derrubá-los. “Vários deles não têm nenhum sentido. E há uma urgência porque as ações voltadas para os povos indígenas são muito lentas e esse projeto, essa lei, daria agilidade porque tem ações bem específicas na prevenção, no combate à doença, na saúde, na questão da segurança alimentar”, disse.

Genocídio

No dia 14 de julho, deputados de oposição também cobraram a análise pelo Congresso dos vetos de Bolsonaro durante a sessão virtual do plenário. Ainda não há previsão de quando o tema entrará na pauta do Congresso Nacional. Na ocasião, o líder da Minoria, deputado José Guimarães (PT-CE), acusou o governo federal de promover “genocídio” da população indígena.

“Esses vetos do presidente tipificam, sim, crime de genocídio. Bolsonaro impediu que o Estado oferecesse acesso à água potável e garantisse a distribuição de produtos de higiene e limpeza às aldeias indígenas, quilombolas e dos povos tradicionais”, disse.

A deputada Joenia Wapichana se manifestou novamente e disse que o governo federal menospreza o impacto da pandemia na população indígena com os vetos.

A líder do Psol, deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS), também defendeu a derrubada dos vetos. “Nós sabemos que a maioria das vítimas da Covid-19 são, justamente, a população mais pobre, tanto é que, em termos percentuais, a população negra é mais exposta e a população indígena ainda mais. Mesmo assim, Bolsonaro vai lá e veta coisas que votamos por unanimidade nesta Casa”, criticou.

O deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) afirmou que os vetos impedem medidas emergenciais para combate ao novo Coronavírus entre os indígenas e povos tradicionais. “O presidente vetou as coisas mais elementares, demonstrando claramente toda a disposição que este governo tem de exterminar, esta é a palavra, exterminar esses segmentos da sociedade”, criticou.

Para o deputado Pedro Uczai (PT-SC), a decisão do presidente da República é mais uma demonstração de que não há preocupação do governo federal em salvar vidas durante a pandemia. “O governo não faz, não protege a vida do povo brasileiro, permite a provocação de um genocídio, principalmente com os mais pobres, trabalhadores do campo e da cidade, inclusive com os mais de 500 indígenas [mortos pela Covid-19] neste País”, afirmou.

Indignação indígena

Para lideranças indígenas, os vetos de Bolsonaro descaracterizam totalmente o plano e reduzem de forma extrema o alcance da medidas. “Nós podemos apontar o veto ao acesso à água potável, à distribuição de cestas básicas, aos materiais de higienização nas aldeias, bem como a questão do orçamento desse plano emergencial. Então, a lei que é sancionada, apresenta essa série de vetos, que vão descaracterizar o plano emergencial relacionado aos povos indígenas e comunidades tribais. A nosso ver, o plano está totalmente descaracterizado e o seu alcance está comprometido”, afirmou Tito Meneses, da etnia Sateré Mawé.

O líder indígena Orlando Baré diz que os povos indígenas brasileiros, historicamente, vêm caminhando sob “intensa política de exclusão, massacres sem precedentes e integracionismo massacrante”. Para ele, o presidente Bolsonaro, pensa de forma preconceituosa o destino dos indígenas no período da pandemia.

“Em muitas áreas, a pandemia está chegando agora. Mas, para os indígenas urbanos, a Covid-19 já levou dezenas de parentes. Logo, é preciso que este governo, sem burocracia, dê uma atenção imediata aos nossos parentes, sobretudo em logística e profissionais, na esperança de salvar vidas. E, paralelo a isso, é necessário o respeito à integridade ambiental dos nossos territórios”, afirmou Orlando.

Contexto preocupante

Os indígenas ressaltam ainda que os vetos ao plano emergencial vêm em um momento de maior fragilidade para os povos tradicionais que tentam combater a doença ao mesmo tempo em que enfrentam o narcotráfico e o garimpo ilegal. “A realidade dos povos indígenas no contexto da pandemia tem o tráfico ilegal de drogas, o garimpo ilegal e esse contexto da falta desse plano emergencial relacionado a povos indígenas. Estamos há mais de 90 dias sem esse plano. Então urge o governo federal tomar alguma iniciativa, se fazer de governo, por ordem no Amazonas, assim como no Brasil inteiro”, disse Tito Meneses.

O líder indígena Sateré Mawé relatou que, na região do Baixo Amazonas, o narcotráfico e o garimpo ilegal expulsaram membros da barreira sanitária do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Parintins, no acesso fluvial à terra indígena Andirá-Marao, há cerca de 30 dias. Segundo ele, o caso foi denunciado à Polícia Federal, ao Governo do Estado, ao alto comando da Polícia Militar, ao Ministério Público Federal e ao Ministério da Justiça. “Já passou um bom período e ainda não tivemos nenhuma resposta”.

Vetos são injustificáveis e desumanos, diz CNBB

A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também reagiu com indignação aos vetos do presidente Jair Bolsonaro no Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas. No dia 13 de julho, a CNBB publicou uma carta aberta endereçada ao Congresso Nacional em que faz duras críticas.

“Esses vetos são eticamente injustificáveis e desumanos pois negam direitos e garantias fundamentais à vida dos povos tradicionais, como por exemplo o acesso a água potável e segura”, escreveu a CNBB na carta.

O documento é assinado pelo presidente da confederação e arcebispo de Belo Horizonte, Dom Walmor Azevedo de Oliveira; e pelo secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella Amado, bispo-auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

De acordo com o texto da carta, a CNBB tomou conhecimento dos vetos “com indignação e repudio” e estes “atentam contra a Constituição Federal”. “Com efeito, ao abolir a obrigação de acesso à água potável e material de higiene, de oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, bem como outros aspectos previstos no PL 1142/2020, como alimentação e auxílio emergencial, os vetos violam o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III), do direito à vida (CF, art. 5º, caput), da saúde (CF, arts. 6º e 196) e dos povos indígenas a viver em seu território, de acordo com suas culturas e tradições (CF, art. 231)”, diz a carta.

Para a CNBB, o argumento do Executivo de que os pontos vetados criavam despesa obrigatória ao poder público sem demonstrar o impacto orçamentário não se sustenta por causa da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Orçamento de Guerra, que “autoriza os gastos necessários para combater a crise gerada pela pandemia do novo Coronavírus”.

Vetos do presidente Bolsonaro

  • Garantia de acesso universal à água potável;
  • Distribuição gratuita de materiais de higiene e limpeza para desinfecção de aldeias e comunidades;
  • Garantia de atendimento de média e alta complexidade diferenciada para indígena com: oferta emergencial de leitos hospitalares e UTI; aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea;
  • Elaboração e distribuição de materiais em formatos e línguas diversas para prevenção da covid-19;
  • Provimento de pontos de acesso de internet em aldeias e comunidades;
  • Disponibilização de dotação orçamentária imediata, em valor ao menos igual da SESAI, para priorizar a saúde indígena e implementação do Plano Emergencial.
  • Segurança alimentar e nutricional:
  • Distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas;
  • Plano safra indígena e quilombola 2020;
  • Inclusão dos quilombolas certificados no Plano Nacional de Reforma Agrária;
  • Indígenas em isolamento voluntário:
  • Criação, em dez dias, de plano de contingência para cada povo isolado/recente contato reconhecido pela Funai para situações de contato;
  • Criação, em 10 dias, de plano de contingência para cada povo isolado/recente contato reconhecido pela Funai, para enfrentamento de surtos e pandemia;
  • Fortalecimento do Subsistema de Saúde Indígena
  • Criação de mecanismos de financiamento da União para estados e municípios para atendimento de média e alta complexidade para indígenas fora da aldeia;
  • Aporte adicional de recursos para os DSEI e ao Subsistema em situações emergenciais e de calamidade pública;
  • Inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais dos municípios para atendimento de pacientes graves;
  • Obrigatoriedade do SUS registrar atendimento indígena;
  • Integração de informação do SUS com as do Subsistema de saúde indígena;

(*) Com informações das agências Câmara e Senado e da CNBB.

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