Empresária da favela cria calcinha para mulheres trans; ‘fácil de vestir e confortável’
28 de abril de 2022
Peças que escondem genitália masculina foram usadas por Linn da Quebrada no BBB22 e substituem esparadrapos que machucam pele e impedem ida ao banheiro (Divulgação)
Com informações da Folhapress
SÃO PAULO – Silvana Bento criou uma calcinha para ajudar mulheres trans a disfarçarem pênis e testículos. Ela não frequentou escolas de moda, nem era ativista da causa. Moradora de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, negra e mãe de quatro filhos, teve a ideia quando trabalhava no banco de sangue de um hospital.
“Uma das meninas que fazia transfusão comigo morreu na fila do transplante de rim. Fiquei devastada”.
Mulheres trans e travestis confidenciavam que usavam esparadrapos e até cola instantânea para deixar a virilha sem volume. Seguravam ‘xixi’ por horas para manter a bandagem presa ao corpo durante o dia. E, por isso, iam parar no hospital com infecção urinária e insuficiência renal.
“Eu me perguntava como as pessoas morriam por isso”, diz a técnica em hemoterapia e, hoje, dona da marca de moda Trucss.
Em 2016, Silvana Bento, 45, desenhou uma calcinha com espécie de bolsa que acomoda a genitália de forma saudável e não marca na roupa. Patenteou a invenção. Em 2017, pegou o último ônibus para seu plantão noturno em um hospital na Zona Sul de São Paulo. Largou a profissão. Nascia Silvana Trucss, nome registrado.
Enquanto dava vida ao novo empreendimento, o marido pagava as contas da casa como motorista de aplicativo. Os filhos mais velhos “ajudavam como podiam”.
O primeiro desafio logo veio. “Procurei costureiras daqui de Guaianases para fazer as peças-piloto, eu não sei pregar um botão. Contudo, a maioria delas não quis produzir quando eu disse o que era”.
Silvana lembra que uma costureira chegou a pensar ser roupinha para gato. Outra disse que a calcinha “não era de Deus”.
A mão amiga veio de uma designer de moda com uma pequena fábrica de bichos de pelúcia e bonecos de pano. “Ela mandou o modelo e vi que se tratava de um produto novo. Costurei sem questionar”, afirma Renata Silva, 40. “É uma peça que é fácil de vestir, confortável, ajustável e aquenda”.
Aquendar significa esconder pênis e testículos. E estes são sinônimos de neca. Vocabulário que Silvana aprendeu com a filha, Natália Pietra, de 23 anos, lésbica.
“Temos nossa forma de nos expressar, mostrar o que estamos sentindo, e minha mãe sempre foi aberta”, conta Natália, que nos momentos de folga compõe rap.
Muitas vezes foi errando que aprendi / E todas às vezes você estava ali / Um sonho realizado, todos dias, te ver sorrir / Minha rainha, existência que me faz resistir
Natália Pietra, Filha de Silvana Bento e compositora de rap
Silvana contratou amigos LGBTQIA+ da filha para fazer os protótipos. “Dava R$ 100 para experimentarem as calcinhas. Criei 16 variações, usando lycra e renda, além da moda praia”, diz.
O boca a boca e as redes sociais trouxeram consumidores para a marca. A empresária fala com orgulho de sua cliente mais famosa: “Linn da Quebrada usou minhas peças no Big Brother”.
Linn da Quebrada no BBB 22 (Instagram/linndaquebrada)
Mar Moraes, 35, tirou fotos para divulgar entre as amigas no Rio de Janeiro. “Achei interessante porque é uma mulher cis pensando na gente dessa maneira”, afirma a modelo e atriz.
“Cansei de me machucar e queimar a pele”, conta sobre as estratégias para esconder a neca. “Era constrangedor ir ao banheiro e, agora, posso ir à praia, o biquíni é cavado como a gente gosta e fico aquendadíssima”.
Além do conforto, Mar Moraes diz que as calcinhas e biquínis têm efeito psicológico. “A autoestima vai em Júpiter”.
A modelo Mar Moraes, 35, posa com peças da Trucss, que comercializa calcinhas e moda praia para mulheres trans (Divulgação/Instagram @morennomar)
Outro público que se aproximou da marca foi pais e mães de crianças trans. “Comecei a fazer protótipos para atender ao público infantil”, diz Silvana. “A aquendação não é igual a das mulheres, pois elas estão em fase de crescimento e não pode causar deformidade”.
Com vendas online e ticket médio de R$ 100, Silvana abriu uma loja na Rua Augusta, região central de São Paulo, pouco antes da pandemia. Não durou. A ordem, para manter as portas fechadas, trouxe dívidas à família, que viu o faturamento da Trucss cair 70%.
Com apoio de programas de aceleração, a empresária conseguiu se reerguer. Mas em um deles sofreu discriminação. “Falaram para eu mudar de público porque trans eram analfabetas, prostitutas e não teriam dinheiro para pagar por meu produto”.
Como negra e periférica, não era a primeira vez que Silvana ouvia palavras agressivas. “Não fiquei calada, debati. Mas foi um desgaste desnecessário”.
Em abril, ela esteve na Expo Favela e foi uma das dez empreendedoras escolhidas para fazer parte de um reality show na TV Globo. A competição está sendo exibida no programa “É de Casa”, aos sábados, e terá como prêmio R$ 80 mil.
E se Linn da Quebrada canta “Eu matei o Júnior”, em referência ao seu passado, Silvana Trucss não apagou a profissional de saúde que colhia bolsas de sangue em hospitais. A partir dessa experiência é que pensa em escalar o negócio.
Mulheres trans não procuram ajuda médica porque não são bem tratadas, ninguém sabe como lidar.
Silvana Bento, criadora da Trucss
Segundo ela, seria um incentivo tanto para que elas busquem mais orientação sobre sua saúde, quanto para que profissionais tenham mais convívio com o público LGBTQIA+.
“Meu dom é pôr minha cara na marca e quebrar barreiras, trazendo mulheres trans comigo”, afirma Silvana, que agora se reconhece como ativista da causa. “Costumam falar que não vendo calcinhas, realizo sonhos. Isso enche o coração”.
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