Enquanto famílias têm pedido negado, comerciantes recebem ‘Auxílio’ da Prefeitura de Manaus

Para obter o benefício, era necessário ter renda mensal per capta de R$ 178 e não possuir emprego formal, (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Carolina Givoni e Paula Litaiff – Da Revista Cenarium

MANAUS – Prometido pelo prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), para ajudar famílias em vulnerabilidade social em meio à pandemia com um valor mensal de R$ 200, o chamado “Auxílio Manauara” beneficiou comerciantes com capital social de até R$ 100 mil, deixando de fora, pessoas que vivem na extrema pobreza. A constatação é da REVISTA CENARIUM.

A coleta de dados foi feita a partir da lista de contemplado, divulgada na terça-feira, 2, pela prefeitura e demais órgãos ligados à iniciativa. A validação das informações dos empresários surgiu após consulta em sites de domínio público com informações disponíveis a qualquer usuário da internet.

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Para serem elegíveis ao benefício municipal determinado por David Almeida, no Diário Oficial do Município (DOM) em 26 de janeiro deste ano, os critérios incluíam ser favorecidos pelo Bolsa Família, mas o decreto abriu brechas para quem não estava dentro do programa, também, receberem o valor de R$ 200.

Pela seleção para o Auxílio Manauara, a obrigatoriedade para obter o benefício era ter renda mensal per capta (individual) de R$ 178 e não possuir emprego formal, além de conter crianças de até 36 meses (três anos) na composição familiar.

Empresário atacadista

Rivelino Vasconcelos Martins é proprietário da empresa R. M. Comércio Atacadista de Material Elétrico Ltda., com capital inicial de R$ 100 mil declarados à Receita Federal (RF) e foi aprovado no Auxílio Manauara.

Martins possui uma Empresa de Pequeno Porte (EPP), que segundo a Lei Complementar (LC) nº 123 de 2006, se enquadra em empreendimentos que possuem receita bruta anual entre 360 mil e 4,8 milhões de reais.

Capturas de tela do site do Auxílio Manauara e da Receita Federal, onde constam informações do empresário. (Reprodução/Internet)

A atacadista de material elétrico localizada no Centro de Manaus foi aberta em 4 de agosto de 2020, período em que a emergência epidemiológica já ocorria na capital há cinco meses no Brasil.  

O empresário também chegou a participar do pregão eletrônico do Comando Militar da Amazônia (CMA) do dia 24 de junho de 2020, alcançando a quarta colocação.

Prints que exibem informações do Pregão Eletrônico. (Reprodução/Internet)

Em consulta ao endereço fornecido no site da RF, a CENARIUM constatou que funciona outro estabelecimento no local. Ainda em tentativa de contato, para saber se de fato Rivelino solicitou o auxílio, o telefone do empresário cadastrado na plataforma da Receita não recebe ligações.

Dados exibidos na Receita Federal com dados do empresário beneficiado pelo auxílio. (Reprodução/Internet)

Além disso, o endereço cadastrado está localizado em um bar conhecido da cidade. Moradores foram questionados sobre Rivelino e informaram que o comerciante não mora mais no local. Nos fundos e na parte superior são casas alugadas.

Ponto comercial de um bar da capital amazonense (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Proprietário de oficina

Valnes Mota da Costa é um dos nomes que consta na lista do benefício. Na quarta-feira, 3, o nome era exibido como “Valnes Mota Da” – e após o ajuste da prefeitura, feito depois das críticas de inclusão dos nomes “Acidente” e “Brócolis” – expôs Valnes Costa Damasceno, com o mesmo CPF, iniciado em 406 e com dígito verificador 49.

Nome de Valnes alterado no site da Prefeitura de Manaus (Reprodução/Internet)

O beneficiário possui CPF vinculado a uma empresa de serviços de manutenção e reparação elétrica de veículos. Com abertura de CNPJ em 14/05/2020, a Microempresa (ME) localizada no bairro Monte das Oliveiras, zona Norte da cidade, tem um faturamento anual de até R$ 360 mil.

Print que compara dados do beneficiário na base de dados da Receita Federal. (Reprodução/Internet)

Em visita ao local, a equipe da CENARIUM confirmou a atividade comercial, que possui dois pontos de atendimento ativos e tentou falar com o proprietário, para confirmar se o mesmo havia pedido o auxílio. Ele não estava no estabelecimento e também não respondeu ao contato telefônico feito pelo número disponível na Receita Federal.  

Equipe foi até o endereço indicado na Receita Federal. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
O beneficiário possui CPF vinculado a uma empresa de serviços de manutenção e reparação elétrica de veículos. (Reprodução/Internet)

Comércio de decorações

Outra proprietária de estabelecimento comercial, Leia Leal Alves, também, é uma das contempladas pelo auxílio. Com uma ME aberta em 9 de janeiro de 2020 com capital de R$ 8 mil, o empreendimento também entra na classificação de negócios com faturamento anual de até R$ 360 mil.

Com atividade principal registrada com aluguel de móveis, utensílios e outros, a empresa fica localizada no bairro Jorge Teixeira, Zona Leste de Manaus.

No endereço informado pela Receita, a CENARIUM entrevistou moradores, para saber se de fato ali existe uma empresa. No entanto, não foi confirmada a presença do ambiente entre as residências.

A beneficiária possui CPF vinculado a uma empresa de decorações. (Reprodução/Internet)

Pobreza extrema

Uma comunidade localizada na Rua da Cachoeira, no bairro São Jorge, zona Oeste da capital amazonense tem sobrevivido à pandemia e ao período de cheias e vazantes à beira do igarapé.

Na região, além da ausência do saneamento básico e água encanada, os moradores fazem o que podem para se manter por meio do trabalho informal.

Gracileine Marinho mostra o almoço. (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

Para constatar se as famílias foram ou não beneficiadas com a iniciativa do Executivo municipal, a CENARIUM foi até o local e entrevistou moradores do local, que não receberam auxílio emergencial federal, estadual e nem municipal.

Uma das chefes de família, a autônoma Gracileine Cavalcante Marinho explica que o almoço, a principal refeição do lar que contém três crianças, será ovo cozido com farinha.

Gracilene detalha que, por conta da pandemia, as filhas deixaram de estudar na Escola São Dimas da Prefeitura de Manaus, situada no mesmo bairro, local onde as crianças tinham acesso à merenda escolar.

Raylla com oito anos ao lado da mãe Gracileine com o irmão no colo, o menino Calebe de um ano e um mês (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

A não frequência das crianças na escola prejudicou a dona de casa até no recebimento do Bolsa Família. “Quando fui tentar sacar o Bolsa Família já estava bloqueado, porque não apresentei comprovante de frequência escolar”, lamentou.

Renda per capita

Um dos principais critérios para exclusão de solicitantes do Auxílio Manauara recai justamente na renda por indivíduo (renda per capta). Com isso, o total de ganhos de uma família, dividida pelo número de moradores da residência não pode superar os R$ 178,00.

Por exemplo, em um núcleo familiar de cinco pessoas, o principal responsável tem um salário de R$ 850, enquanto o parceiro tem uma renda de R$ 800 e dividem os ganhos com outros três moradores da casa que não trabalham. Como consequência, a renda desta família é de R$ R$ 1.650,00. Com a divisão por cinco, a renda per capita é R$ 330,00.

No simulação, o Auxílio Manauara não seria aprovado para a família hipotética, pois é voltado para atender indivíduos extremamente pobres, que, atualmente, somam 13,689 milhões de brasileiros, conforme apontam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Nomes bizarros

A publicação da lista de beneficiados pelo Auxílio Manauara neste mês, março, gerou polêmica entre representantes de órgãos de controle e internautas. Nomenclaturas bizarras fizeram a relação viralizar na internet.

Entre os “contemplados” pela Prefeitura de Manaus estavam: “Acidente dos Santos Vieira”, “Terra Brasil”, “Malandra Santos”, “Brisa Scarlatt”, “Brócolis Rosane”, entre outros nomes incomuns. Questionada, a Prefeitura de Manaus informou que houve um “equívoco na digitação”.

Equívoco reincidente

Não é a primeira vez que a Prefeitura de Manaus se “equivoca” em uma relação de beneficiados. Na lista de imunizados da Covid-19, em janeiro deste ano, a cada dez vacinados, dois tinham CPFs inexistentes.

Além de distorções no número de documentos, a relação trouxe ainda a polêmica dos “furas-fila” da vacina, com a priorização de empresários, fornecedores da Prefeitura de Manaus e aliados políticos.

O episódio fez o Ministério Público do Amazonas (MP-AM) pedir a prisão e o afastamento do prefeito David Almeida e de outros 20 servidores. Até hoje, o caso está sob investigação policial.

‘Filtros’ do sistema

À CENARIUM, a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania (Semasc), pasta também responsável pela administração do Auxílio Manauara, informou que foram utilizados filtros no sistema para excluir os cadastros que não se encaixam nos critérios do programa.

E declarou que “disponibiliza dois números para denúncias: 98842-4777 e 98842-1018, atendimento de segunda a sexta-feira, de 8h às 17h”. E que caso seja comprovada a irregularidade, será encaminhado à Procuradoria-Geral do Município (PGM) para que sejam adotadas as medidas cabíveis.

Já a Secretaria Municipal de Educação (Semed), responsável pela administração da Escola Municipal São Dimas, informa que continua emitindo as declarações escolares dos alunos, mesmo durante a pandemia de Covid-19.

A reportagem da REVISTA CENARIUM tentou contato com os comerciantes citados na matéria, mas não obteve retorno.

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