Entidades apontam racismo e capacitismo em mudanças do BPC


Por: Ana Cláudia Leocádio

06 de dezembro de 2024
Homem em cadeira de rodas (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Homem em cadeira de rodas (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

BRASÍLIA (DF) – O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em conjunto com outras entidades, publicou uma nota de repúdio ao Projeto de Lei 4614/2024, que faz parte do pacote de ajuste fiscal do governo federal e propõe uma série de mudanças para a concessão do Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC). Segundo a entidade, a proposta “afronta o Estado Social brasileiro, o que faz dela uma estratégia de injustiça social, em seu caráter racista, capacitista, misógino, patriarcal e etarista”.

O PL, de autoria do líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), teve o pedido de urgência para tramitação aprovado, na última quarta-feira, 4, junto aos demais projetos que trazem mudanças em outros pontos sensíveis dos direitos sociais, como a limitação do crescimento real do salário mínimo a 2,5% acima da inflação, entre outras alterações.

Instituído pela Lei 8.742/1993, o BPC prevê o pagamento de um salário mínimo para pessoas com deficiência e pessoas idosas que possuem renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo. Segundo o Portal da Transparência do governo federal, atualmente, são 4,7 milhões de pessoas que recebem esse benefício.

Idosos aguardam em fila (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Segundo a nota publicada no site do CFESS, a proposta retira direitos garantidos no Artigo 203, inciso V da Constituição Federal de 1988 e propõe, especialmente, alterações de grande vulto para acesso e permanência de pessoas idosas e pessoas com deficiência no BPC, “especialmente de pessoas negras e periféricas, que configuram os setores historicamente mais precarizados no acesso a direitos no País”.

“Desde sua implementação (em 1993), esse benefício sofre ameaças e ataques por setores conservadores e neoliberais da sociedade brasileira, que são contrários aos direitos da classe trabalhadora. Mas, como frente a essas ameaças, o BPC possui forte mobilização social para sua defesa e ampliação”, ressaltam as entidades.

A nota acrescenta, ainda, que os interesses do “tal mercado” se sobrepõem nas decisões do Estado brasileiro, em detrimento da vida da classe dos trabalhadores, que muitas vezes só tem o BPC como oportunidade de sobrevivência. Isto porque o benefício alcança, na maioria das vezes, pessoas idosas com tempo incompleto de contribuição previdenciária para a aposentadoria e por isso recorrem a este direito. “O BPC substituiu e qualificou a ‘Renda Mensal Vitalícia’, criada em 1974, um direito do(a) trabalhador(a), que era sucessório a dependentes e passou a ser pessoal e individual”, esclarece.

Para as entidades, “as alterações propostas, sem qualquer debate com a sociedade e com incidência política para votação aligeirada e em caráter de urgência, estão na perspectiva de eliminação de direitos e, ainda, reforçam uma concepção capacitista, familista e moralizadora da população beneficiária, aviltando princípios fundamentais de defesa da vida e da autonomia para todas as pessoas”.

A nota ressalta que a mudança na conceituação de pessoa com deficiência impõe a ela a condição de “incapacitada para a vida independente e para o trabalho”. “O PL, vergonhosamente capacitista, retrocede na defesa dos direitos humanos, viola tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, desconsidera a Lei Brasileira de Inclusão (LBI/2015) e, consequentemente, todo o histórico de lutas das pessoas com deficiência e todas as alterações em legislações posteriores que reconhecem a Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde (CIF), no processo de avaliação do grau de impedimento. O retorno ao “ato médico” significará o ponto que, talvez, mais excluirá pessoas do acesso ao benefício”, criticam as organizações.

Crítica ao critério de renda familiar

A crítica mais incisiva se dá nas mudanças de critérios de conformação da renda familiar para poder conceder o benefício que, para as entidades, não tem sustentação jurídica nem científica, pois “altera a definição de família, substituindo o direito de cidadania por uma perspectiva que reduz pessoas idosas e com deficiência a “infra cidadãs”.

Uma das mudanças previstas no projeto define que, se a família já tiver outro beneficiário do BPC ou aposentadoria, o valor recebido por ele entrará na conta para apuração da renda familiar per capita. Será preciso somar a renda da pessoa que solicitou o BPC com a renda daqueles que moram com ela e com familiares que a ajudem. Essa renda será dividida pelo número de pessoas e, se for maior que 25% do salário mínimo, o requerente do benefício perde o direito ao BPC.

Pela legislação atual, de 2020, a renda de terceiros não é computada. Além de acabar com essa regra, o governo quer ainda considerar a renda de parentes que não moram na mesma casa, mas que contribuem com alguma ajuda financeira ao solicitante do BPC, na hora de avaliar a concessão do benefício.

“As medidas de ajuste fiscal prometem o equilíbrio das contas públicas, mas entregam aprofundamento da desigualdade! Prometem equidade no trato das medidas para todos os setores da sociedade, mas, entregam, com requintes de perversidade e de reprodução do racismo estrutural, sufocamento nas condições de vida, em especial de mulheres negras que são a maioria das beneficiárias e, também, das figuras de cuidadoras de pessoas idosas e pessoas com deficiência desse País, com ênfase nas desigualdades territoriais que impactam de forma ainda mais evidenciada as regiões Norte e Nordeste”, sustenta a nota.

Ao pedir a retirada do PL 4614/2024 de tramitação da Câmara, as entidades enfatizam que a crítica ao conteúdo da proposta está de acordo com o histórico das organizações que constroem os direitos sociais no País há décadas.

“Em hipótese alguma, ela pode ser confundida com as defesas oportunistas de setores do “centrão”, da direita e da extrema direita que usam essas contradições para ataques não só ao governo federal, mas ataques aos movimentos que lutam por direitos sociais. É preciso que haja coragem para que o Estado brasileiro assuma, de fato, a direção em defesa do povo e essa nota reivindica isso!”, concluem.

Tramitação na Câmara

Desde que teve urgência aprovada na Câmara dos Deputados, na última quarta-feira, 4, o que permite que o texto seja votado direto no plenário, sem passar pelas comissões, o projeto vem sofrendo críticas tanto de parlamentares da oposição quanto da bancada de apoio ao governo.

A deputada Maria Arraes (Solidariedade-PE), que havia subscrito a proposta, por exemplo, pediu para ter sua assinatura retirada por não concordar com o teor do texto que, na opinião dela, vai contra alguns entendimentos e aplicações desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo dos anos sobre o BPC, e merece uma discussão mais aprofundada.

O próprio autor da matéria, deputado José Guimarães, reconhece a importância das críticas ao projeto e disse que o governo está comprometido em debater melhor na próxima semana. “É claro que nós vamos discutir, na hora certa, o mérito das matérias. Muitos dos senhores nos colocam, com razão, restrições com relação ao projeto, ao que está contido sobre o BPC, às mudanças que o governo está sugerindo; muitos levantam ponderações sobre o Bolsa Família”, afirmou.

O Congresso Nacional agora tem duas semanas para votar o pacote do ajuste fiscal enviado esta semana pelo Poder Executivo, além da Proposta de Lei Orçamentária de 2025, que encerrou o recebimento de emendas nesta semana.

Leia a íntegra da nota:
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Editado por Adrisa De Góes

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