Escalpelamento marca a vida de mulheres na Amazônia


Por: Marcela Leiros

29 de agosto de 2025
Escalpelamento marca a vida de mulheres na Amazônia
Suellen Soares: "A grande mudança foi aprender a ser mais forte" (Ricardo Oliveira/Cenarium)

MANAUS (AM) – Na Amazônia, os rios são estradas e os barcos fazem parte da vida cotidiana. Para quem vive na região, navegar pode ser essencial para atividades do dia a dia, como ir à escola, ao hospital ou ao comércio. Nesse mesmo cenário, porém, ocorre um dos acidentes mais graves da região: o escalpelamento, quando os cabelos (e, em casos mais severos, parte do couro cabeludo e da pele) são arrancados pelo motor de eixo das embarcações de pequeno porte.

Mais do que uma marca física, a violência desse acidente deixa feridas profundas na autoestima, principalmente das mulheres, que representam a maioria das vítimas. Muitas sofreram o acidente ainda na infância ou adolescência e cresceram enfrentando olhares, preconceitos e dores invisíveis, além de tratamentos dolorosos.

A amazonense Suellen Soares é uma das vítimas de escalpelamento (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Este é o caso de duas mulheres que precisaram encontrar forças onde nem sabiam que havia para enfrentar os desafios após o escalpelamento: Suellen Soares Batista e Franciane da Silva Campos, do Amazonas e do Amapá, respectivamente.

A primeira é natural de Parintins, a 369 quilômetros de Manaus. Hoje, com 34 anos, Suellen sobreviveu ao escalpelamento em 2004. À CENARIUM, a enfermeira relatou qual foi o seu principal desafio após o acidente.

“A grande mudança que aconteceu na minha vida após o escalpelamento foi aprender a ser mais forte. Eu era uma criança de apenas 12 anos, e tive que ser forte para enfrentar e saber lidar com a sociedade em que vivemos hoje”, compartilhou a amazonense.

Suellen Soares, em 2004; na foto, ela sorri, enquanto estava internada em uma unidade de saúde após o acidente (Reprodução/Instagram @suellenbattistta)

O escalpelamento aconteceu em 18 de agosto, um dia antes de seu aniversário de 13 anos. Viajando com a família em uma embarcação própria rumo à sua cidade natal, ela lembra de ter levantado cedo, da rede onde dormia, para fazer a higiene pessoal. Foi nesse momento que toda a vida de Suellen mudou.

Ao passar pela sala de máquinas, escorregou próximo ao eixo do motor, que não tinha proteção. Em segundos, seu cabelo ficou preso na máquina. O impacto arrancou 99% do couro cabeludo, além de parte da orelha direita e da sobrancelha, deixando ainda ferimentos no rosto, peito e costas. A gravidade da cena chocou até os profissionais de saúde que a atenderam, marcando para sempre sua vida.

“Como eu já estava próximo a Parintins, recebi logo os primeiros atendimentos lá mesmo e permaneci durante o dia até que a minha família, juntamente com alguns conhecidos, providenciasse a transferência para Manaus. Fui atendida por uma equipe super abençoada, foi um choque porque nunca tinham lidado com a situação“, lembra ela sobre o atendimento médico. Depois de chegar à capital amazonense, ficou internada em uma unidade de saúde até dezembro de 2004.

Suellen Soares, hoje enfermeira: “Fui atendida por uma equipe superabençoada, mas foi um choque porque nunca tinham é lidado com a situação” (Ricardo Oliveira/Cenarium)
Sequelas do escalpelamento

Franciane, moradora de Santana (AP), também carrega até hoje as marcas do acidente sofrido no dia 5 de agosto de 1984, por volta das 11h, quando viajava de barco com o pai. Na hora de almoçar, ela deixou a colher cair e, no momento em que se abaixou para pegá-la, seu cabelo foi puxado pelo eixo do motor da embarcação. O acidente resultou no escalpelamento total, com a perda dos cabelos, da orelha esquerda e sequelas no olho do mesmo lado.

Franciane teve escalpelamento total após cabelos enrolarem em volante do eixo do motor (Reprodução/Arquivo pessoal)

O socorro inicial foi prestado em Serra do Navio, onde ficou 40 dias hospitalizada. Em seguida, foi transferida para a capital Macapá, onde permaneceu internada por mais de um ano. Até hoje, sua rotina passou a ser marcada por dores constantes, crises de enxaqueca e complicações de saúde. “Depois do escalpelamento, minha vida foi diferente, com dores, preconceito que nunca acaba. É difícil, está sendo difícil, hoje eu estou com 46 anos e até hoje não é fácil“, disse à CENARIUM.

Autoestima reconstruída

Suellen enfrentou, e ainda encara de frente, um longo tratamento de saúde. Em 21 anos, passou por 36 cirurgias. Mesmo com a reconstrução da área afetada pelo escalpelamento, com o uso de perucas de cabelo sintético e lenços, o trauma e as marcas recaíram sobre sua autoestima. A amazonense não desistiu de continuar seguindo a vida.

Logicamente que vieram muitos pensamentos, tipo ‘Ah, eu não vou conseguir estudar mais, sair de casa, ter novos amigos ou estar no meio das pessoas porque eu vou me sentir com vergonha’, a partir do momento que meti na minha cabeça que eu tinha sobrevivido a um acidente no qual eu tinha pouquíssimas chances, falei ‘eu vou viver, daqui para frente eu quero é viver'”, declarou, lembrando que passou a ter um sonho.

Ao longo de todo esse período em que aconteceu o acidente, veio a questão da autoestima, do cabelo. Então, eu procurava pessoas, juntamente com a minha família, para conseguir uma peruca de cabelo natural, mas eu falava: ‘Como eu vou conseguir, sendo que eu não tenho condições de comprar?’, porque é muito caro“, recordou Suellen.

Por anos, esse foi seu maior desejo. Até que, em uma busca na internet, ela descobriu Wilke Cidade, cabeleireiro que ajuda mulheres que precisam de perucas, como pacientes com câncer. “O cabelo é a autoestima da mulher, é a moldura do rosto, então, ver a Suellen feliz, sorrindo, assim como ela está, com o cabelo lindo, de cabelo natural, tô realizado“, disse o profissional da beleza à CENARIUM.

Wilke Cidade e Suellen Soares (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Para Franciane, a reconstrução da autoestima veio apenas aos 30 anos, quando também passou a usar peruca pela primeira vez. O gesto simples, segundo ela, representou um reencontro consigo mesma. “Minha autoestima foi reconstruída nos meus 30 anos, quando eu tive a oportunidade de usar a minha primeira peruca e me deparei assim como uma mulher que conseguiu esconder 80% dos defeitos no meu rosto e cabeça“, detalhou.

Importância do poder público

Casos como o de Suelen revelam a necessidade de ações permanentes do poder público e instituições privadas. Por isso, no dia 28 de agosto, o Brasil relembra o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento, data que chama atenção para as vítimas do acidente que pode levar até à morte.

No Pará, um estudo da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), elaborado pela Diretoria de Estudos e Pesquisas Socioeconômicas e Análise Conjuntural (Diepsac), revelou que apenas três Estados registram escalpelamento: Pará, Amapá e Amazonas, sendo o primeiro onde ocorre o maior número de casos. Em 2009, por exemplo, o Estado teve o mais alto índice, com 22 vítimas.

No mesmo ano, a Lei 11.970 tornou obrigatório o uso de proteção no motor, eixo e partes móveis das embarcações, de forma a proteger os passageiros e tripulações. Entre essas políticas está a troca ou cobertura do chamado motor de centro, que costuma ficar exposto nas embarcações, o que aumenta o risco de acidentes. Segundo a Marinha do Brasil, de 2018 a 2025 foram instaladas 1.760 coberturas de motor de eixo no Pará e Amapá.

Cobertura do eixo do motor de uma embarcação em Santarém, no Pará (Capitania Fluvial de Santarém/Divulgação)

A entrevista completa com Suellen Soares pode ser assistida no canal da TV CENARIUM, disponível no YouTube.

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