ESPECIAL | A essencialidade dos incentivos fiscais, por Etelvina Garcia

Etelvina Garcia (Foto: Bruno Pacheco)

A essencialidade dos incentivos governamentais para o fortalecimento da economia e a promoção do bem-estar social no Amazonas está estruturalmente vinculada ao modelo Zona Franca de Manaus, instituído em 6 de junho de 1957 (Lei n.º 3.173, projeto do deputado Pereira da Silva) e reformulado dez anos depois, pelo Decreto-Lei n.º 288, de 28 de fevereiro de 1967. A convivência da Amazônia com as políticas oficiais de incentivos é, porém, muito mais antiga. Vincula-se às estratégias de consolidação do domínio de Portugal no Estado Colonial do Grão-Pará e Maranhão, formuladas no século XVIII pelo Marquês de Pombal, no reinado de D. José I. Mas, somente em meados do século XIX, sob os efeitos da Lei Imperial 586, de 6 de setembro de 1850, que autorizou o Governo a estabelecer a navegação a vapor “no Amazonas e águas do Pará”, os incentivos governamentais emergiram como alavanca das atividades econômicas do Amazonas – que conquistava, naquele momento, o título de Província do Império (Lei Imperial 582, de 5 de setembro de 1850).  

Movidas a incentivos financeiros do Império e da Província, as primeiras linhas de navegação a vapor, implantadas pelas empresas do Barão de Mauá (janeiro de 1853) e de Alexandre Amorim (1872), abriram um capítulo inovador nos transportes e comunicações do Amazonas, provocando respostas imediatas de uma economia incipiente, castigada por dois séculos de dominação e exclusão. As viagens de Belém a Manaus, que nos barcos a remo ou a vela demoravam até três meses, reduziram-se a apenas dez dias. E logo no ano fiscal de 1853, a borracha apareceu pela primeira vez na pauta de exportações do Amazonas. Ainda assim, havia grandes dificuldades a superar. Os navios estrangeiros não podiam subir o Rio Amazonas e as nossas exportações eram feitas pelo porto de Belém, onde eram cobrados os impostos.  

Coube a Alexandre Amorim, um empresário movido a desafios, a missão histórica de protagonizar a reversão desse quadro. Apoiado no Decreto Imperial 3.749, de 7 de dezembro de 1866, que liberou a navegação no Rio Amazonas aos navios mercantes de todas as nações, Amorim implantou, em 1874, a linha pioneira de navegação entre Manaus e Liverpool. A borracha dos nossos seringais conquistava a liderança do mercado internacional e convertia-se em precioso insumo da Revolução Científico-Tecnológica do Século 19, ou 2a Revolução Industrial, iniciando a surpreendente escalada de lucros que desenharia o perfil da Paris dos Trópicos. Manaus encurtava as distâncias com as grandes economias da Europa e atraía o interesse de brasileiros de todas as regiões, principalmente do Nordeste, e de estrangeiros de todos os continentes. Trocava borracha por libras esterlinas. Podia investir em grandes obras de infraestrutura, arquitetura e urbanismo – e pagar o preço dos bens e serviços que traduziam a modernidade tecnológica dos países industrializados, na virada do século XIX para o século XX: energia e bondes elétricos, telégrafo, telefone, um teatro magnífico, um porto surpreendente, uma rede de saneamento básico que incluía uma das primeiras usinas de tratamento de esgotos do País… 

PUBLICIDADE

A economia da borracha desintegrou-se às vésperas da 1a Guerra Mundial. Não resistiu à competição dos seringais de cultivo da Ásia, que conquistaram o mercado mundial com grandes volumes de produção e preços muito baixos. Seringueiros desencantados lotavam os porões dos navios, de volta ao Nordeste. Famílias inteiras abandonavam a cidade e pediam a parentes e amigos que ocupassem as suas casas, pois não tinham a quem vendê-las. A resistência de empresários corajosos e o capital cultural da Universidade Livre de Manaus ajudaram a sociedade a sobreviver aos efeitos cruéis de cinco décadas de estagnação econômica: falência, crise moral, instabilidade política. 

O Decreto 2.541-A, conhecido como Lei de Defesa da Borracha e assinado pelo presidente Hermes da Fonseca em 8 de janeiro de 1912, instituiu o Plano de Defesa da Borracha. Baseado nas conclusões do 1o Congresso Comercial, Industrial e Agrícola realizado pela Associação Comercial do Amazonas em 1910 e no projeto apresentado à Câmara Federal em 1911 pela bancada do Estado do Pará, foi a primeira intervenção planejada do Governo da República para a Amazônia. Definia diretrizes para a regularização fundiária, implantação de colônias agrícolas e estações experimentais de sementes e mudas, retificação de trechos encachoeirados de rios e construção de estradas de ferro paralelas a esses trechos. Isentava de todos os impostos a navegação fluvial; e do imposto de importação, a compra de máquinas e insumos destinados ao plantio da hevea brasiliensis, à industrialização de borracha, à produção agropecuária, à indústria de pescado e de outros alimentos. Incluía a negociação do imposto de exportação entre os Estados, com isenção para a borracha cultivada e redução de até 50% para a borracha natural. A Superintendência do Plano de Defesa da Borracha foi criada pelo Decreto 9.521, de 17 de abril de 1912, e chegou a se instalar em Manaus, com endereço na Avenida 13 de Maio (Getúlio Vargas), mas teve existência efêmera. A Lei 2.698 extinguiu-a em 13 de fevereiro de 1915, no governo Wenceslau Braz. 

Entre o Plano de Defesa da Borracha, em 1912, e a reformulação da Zona Franca, em 1967, houve um gap de 55 anos. No imediato pós-guerra, a aprovação de Emenda do deputado Leopoldo Péres ao projeto da Assembleia Nacional Constituinte de 1946 deu origem ao Art. 199 da Constituição Federal de 18 de setembro daquele ano, que tornou obrigatória a aplicação de quantia não inferior a 3% das rendas tributárias da União, durante pelo menos vinte anos consecutivos, na execução do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. E abriu o longo caminho que nos conduziria às políticas oficiais de incentivo ao desenvolvimento regional das décadas de 1950 e 1960. 

O deputado Pereira da Silva apressou-se em desenhar as diretrizes de um órgão federal para “centralizar, unificar e superintender a execução do Plano de Valorização Econômica da Amazônia”, e logo no dia 15 de outubro de 1946 apresentou projeto à Câmara Federal, criando o Departamento Nacional da Amazônia. Mas, teve de esperar seis longos anos para vê-lo aprovado, com emendas, originando a Lei 1.806, de 6 de janeiro de 1953, que regulamentou o Art. 199 da Constituição Federal; criou a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA); e instituiu a Amazônia Legal, com área de 5.057.490 km2, que corresponde a 59,38% do território nacional e extrapola os limites da Amazônia Clássica, restritos ao maciço florestal e à rede hidrográfica característica da região.  

Em 23 de outubro de 1951, Pereira da Silva apresentou projeto criando o Porto Franco de Manaus, a fim de incrementar as atividades de indústria e comércio, melhorar a estrutura de abastecimento na bacia amazônica e intensificar a política de cooperação do Brasil com os demais países amazônicos. Pereira da Silva inspirou-se, talvez, na ideia semeada quase cem anos antes pelo deputado alagoano Tavares Bastos, que em viagem de estudos sobre a navegação no Amazonas, quando escrevia O Vale do Amazonas (1865-66), defendera um tratamento tributário diferenciado para Manaus, em comparação ao resto do País, e a criação de um porto franco nesta cidade, abrangendo a Amazônia Brasileira e os países da bacia amazônica. O projeto Porto Franco de Pereira da Silva recebeu emenda do relator, deputado Maurício Jopert, e foi redimensionado em seus objetivos institucionais, originando a Lei 3.173, de 6 de junho de 1957, que instituiu a Zona Franca de Manaus.  

A SPVEA de Leopoldo Péres e a Zona Franca de Pereira da Silva foram reformuladas na década de 1960, sob o signo da Operação Amazônia, no governo do general Castello Branco. A Lei 5.173, de 27 de outubro de 1966, extinguiu a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e criou a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O Decreto-Lei 288, de 28 de fevereiro de 1967, alterou a Lei 3.173, de 6 de junho de 1957, e instituiu o modelo de incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus, direcionados especificamente à produção e somente concedidos mediante a efetiva geração de bens e serviços, trocando receita tributária por resultados econômicos e sociais. E criou mecanismos para ampliar os efeitos dos benefícios fiscais por ele próprio instituídos (isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados e redução do Imposto de Importação), condicionando o início da sua vigência à concessão de crédito fiscal de ICM pelo Governo do Amazonas e de isenção de ISS pela Prefeitura de Manaus (Art. 49, Inciso I). 

A resposta dos investidores foi imediata. No mesmo ano de 1967, iniciou-se a implantação de um vigoroso centro comercial de importação e, em setembro de 1968, a Suframa aprovou o primeiro projeto industrial. Em meados da década de 1970, o nascente Polo Industrial de Manaus dedicava-se à produção de bens de alto valor específico, com intensa mobilização de mão de obra, concentrando parcela significativa da produção nacional de eletroeletrônicos. A escolha da Zona Franca por investidores japoneses e por empresas transnacionais do porte da Philips e da Philco para implantação de seus projetos era a garantia de aceitação dos produtos aqui fabricados. O respaldo técnico de marcas consagradas neutralizava a falta de tradição industrial de uma região, até então, conhecida apenas como exportadora de produtos primários.  

O elevado grau de sofisticação tecnológica da produção industrial da Zona Franca fazia, porém, o contraponto com a política nacional de restrição às importações, ditada pela necessidade de equilibrar o balanço de pagamentos do País, que sofria os efeitos negativos da crise mundial do petróleo. Embora suas importações significassem menos de 2% das importações nacionais, a Zona Franca teve de incorporar-se ao esforço nacional para eliminar o déficit da balança comercial. As importações foram contingenciadas. Instituiu-se o sistema de cotas anuais de importação para os empreendimentos econômicos de todos os setores. As indústrias passaram a cumprir índices mínimos de nacionalização e reduziram compulsoriamente as suas importações. A Zona Franca tornou-se mercado cativo para a indústria nacional de componentes, localizada maciçamente em São Paulo. A cada emprego gerado em Manaus, correspondia a geração de outros dois em São Paulo.  

No começo da década de 1990, o Brasil abriu as fronteiras da economia. Reduziu as barreiras alfandegárias, minimizou as restrições às importações. A nacionalização progressiva, que se tornara obrigatória em 1976, converteu-se em fator de atraso tecnológico. O parque industrial, que em 1990 registrara US$ 8,4 bilhões de faturamento bruto, 76.798 empregos diretos e US$ 827,80 milhões em salários e encargos sociais, experimentou queda vertiginosa nos anos seguintes. Em 1992, o faturamento bruto reduziu-se a US$ 4,5 bilhões, os empregos diretos desceram a 40.361 e a massa de salários e encargos somou US$ 556 milhões. Reduziram-se também os atrativos do polo de comércio e turismo doméstico. Manaus deixou de ser o único centro supridor de bens de consumo importados no cenário nacional. O turismo de compras sofreu um golpe mortal.  

A Zona Franca de Manaus colocava à prova, mais uma vez, a sua capacidade de vencer desafios. O polo industrial incentivado abria as fronteiras da modernização industrial. Máquinas de última geração incorporavam-se ao processo produtivo, elevando os níveis de racionalidade, eficiência e competitividade da produção industrial. A intensiva automação estrutural embutia, porém, um elevado custo social. As indústrias reduziam, redistribuíam e reciclavam seletivamente os seus quadros funcionais e passavam a produzir mais, empregando menos. Parte da mão de obra desempregada era absorvida em novas oportunidades de trabalho surgidas com a expansão da base de produção industrial e com a terceirização de atividades produtivas que antes eram executadas pelas indústrias incentivadas, mas não correspondiam às suas atividades-fim. Esse nicho de oportunidades não diminuía, porém, a intensidade da luz vermelha se acendia, indicando a necessidade de se promover a capacitação de recursos humanos em diferentes níveis de qualificação e reduzir a desigualdade das oportunidades.  

Desde a implantação das primeiras indústrias, no começo dos anos 1970, trabalhadores de diferentes gerações que ocupavam a massa de emprego das linhas de montagem surpreendiam os observadores com a sua habilidade manual e a sua extraordinária capacidade de assimilar tarefas rotineiras e repetitivas. Pergunta-se, então: Nos cenários de modernidade tecnológica dos anos 1990, que colocavam em destaque a valorização atribuída pelas economias competitivas ao desenvolvimento de talentos e à produção de conhecimento, quanto lucraria a nossa Sociedade se esses trabalhadores fossem treinados para pensar, desenvolver a capacidade analítica, o raciocínio abstrato, incorporar-se ao capital humano indispensável para atender às novas demandas geradas pelo esforço de atualização tecnológica e modernização produtiva?  

(*) Etelvina Garcia é jornalista e escritora, autora de duas dezenas de livros dedicados à história econômico-social do Amazonas, entre os quais “Navegação, Comércio e Construção Naval no Amazonas” e “Zona Franca de Manaus – histórias, conquistas e desafios”.

Este artigo foi publicado, simultaneamente, na REVISTA CENARIUM digital/impressa, edição de julho de 2022. Para acessá-la na íntegra, clique aqui.

Capa da Revista Cenarium de Julho/2022
PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.