ESPECIAL | Eles fizeram a Amazônia de cobaia – Anticiência na Amazônia

“Kits Covid” utilizados nas capitais da Amazônia são compostos de medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Marcela Leiros – Da Cenarium

MANAUS – A discussão entre a validade de prescrever, ou não, o tratamento precoce para pacientes diagnosticados ou apenas com suspeita da Covid-19 não se restringe apenas a alguns Estados da Amazônia Legal. Levantamento feito pela CENARIUM mostrou que todas as unidades federativas da região e suas respectivas capitais são palcos de debates sobre possíveis riscos e benefícios de receitar os medicamentos de eficácia não comprovada. A maioria dos governos inseriu protocolos para receitar livremente o “Kit Covid”.

O Maranhão foi um desses Estados. Ainda em maio de 2020, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) inseriu um novo protocolo de medicamentos para o tratamento da Covid-19 com sintomas leves. A medida abrangeria pessoas com comorbidades, com exceção de doença cardíaca, no período de 1º até o quinto dia de infecção.

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O protocolo consistia em um kit com hidroxicloroquina, azitromicina, corticoide, vitaminas C e D, além de remédios para febre e dores, como paracetamol e dipirona.

A medida, instituída há mais de um ano, permanece em vigor, como é possível ver nas redes sociais. No Twitter, é fácil encontrar relatos de pessoas que receberam receita dos medicamentos ou, até mesmo, saíram das unidades de saúde da capital maranhense com os remédios em mãos.

“Kit Covid” que ganhei no hospital. O que fazer?”, afirma o usuário @marcoxrm, com uma foto de Sulfato de hidroxicloroquina. “É o “Kit Covid” de um hospital daqui de São Luís [capital do Maranhão], tu crê”, responde ele, quando questionado sobre ao que se refere o medicamento. A publicação é do dia 24 de março deste ano.

Boa Vista

Em Boa Vista, o cenário não é diferente. Na capital de Roraima, a disponibilização gratuita de medicamentos para tratamento precoce na rede municipal de saúde foi aprovada na Câmara Municipal da cidade em 18 de maio deste ano. O Projeto de Lei (PL), de autoria dos vereadores Dr. Ilderson Pereira, Wan Kenobby e Gabriel Mota determina que “o uso de medicamentos está condicionado à avalição médica, a partir do atendimento e identificação dos sintomas leves da doença e realização de exames complementares nas unidades de saúde”.
A proposta alinha ainda os medicamentos receitados: hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, bromexina, nitazoxanida, zinco, vitamina C, vitamina D, dipirona, prednisona, colchicina, anticoagulantes, ou “outros fármacos que podem ser liberados pelo Ministério da Saúde (MS)”, segundo o PL.

Macapá

Ainda em 2020, a própria prefeitura da capital amapaense já distribuía livremente medicamentos como azitromicina e ivermectina, sob a nomenclatura de “sugestão terapêutica contra a Covid-19”. Além da distribuição dos medicamentos, a prefeitura ainda montou um ponto de distribuição de kits de medicamentos e de avaliação médica para sintomáticos respiratórios. O protocolo foi adotado após sugestão do Comitê Médico de Enfrentamento à doença na cidade e perdura até os dias atuais da gestão do prefeito Antônio Furlan (Cidadania), que também é médico cardiologista.

Entre as medidas do protocolo, foram montados quatro “centros básicos” de Covid com farmácias em frente para “disponibilizar aos pacientes com receituário (seja de unidade de saúde pública ou privada, ou de qualquer localidade) o kit de tratamento”. As medidas também foram realizadas em comunidades quilombolas e agrícolas.

Ainda neste ano, a prefeitura macapaense distribuiu cerca de 150 mil kits de vitaminas e medicamentos para aumentar a imunidade da população contra a doença infecciosa. Os kits reuniam vitaminas C e D, zinco e ivermectina. A distribuição dos itens era destinada ao público de 18 a 70 anos, com adesão não obrigatória.

Cuiabá

Desde julho de 2020, a Prefeitura de Cuiabá, capital do Mato Grosso, passou a disponibilizar o “Kit Covid-19” para pacientes com sintomas leves de “síndrome gripal”, mediante prescrição médica e termo de consentimento. Até janeiro, já haviam sido distribuídos 25.939 kits compostos por 5 comprimidos de azitromicina 500mg, 4 comprimidos de ivermectina 6mg, 20 comprimidos de dipirona sódica 500 mg e 10 comprimidos de zinco 29,5 mg, segundo o site de notícias da prefeitura.

A disponibilização dos medicamentos se traduzia em pressão para prescrevê-los, segundo apontou o jornal O Globo. Em abril deste ano, a reportagem “Médicos relatam demissões, agressões e coerção para receitar ‘tratamento precoce’” mostrou que profissionais lotados em Unidades Básicas de Saúde (UBSs) da capital mato-grossense relataram pressão para prescrever os medicamentos. Um profissional de saúde, que preferiu não se identificar, ouviu de um amigo, quando estava com Covid-19, “vou te prescrever esses remédios, porque sou obrigado, mas por favor não tome”.

Rio Branco

Em Rio Branco, capital acriana, o Ministério Público do Acre (MP-AC) abriu investigação sobre a compra e distribuição de medicamentos do “Kit Covid” pela Secretaria de Saúde de Rio Branco (Semsa). O órgão pagou R$ 700 mil por ivermectina e azitromicina apenas em janeiro deste ano. O prefeito da capital acriana, Tião Bocalom (PP), defende, arduamente, o tratamento precoce e já teve as contas bloqueadas em redes sociais, por defender o método.

Além disso, o Ministério Público Federal (MPF-AC) também cobrou explicações sobre declarações dadas pelo prefeito referentes ao tratamento. Em resposta, Bocalom alegou que nunca defendeu e nem distribuiu o kit na capital. “Inclusive, advertimos que o uso do medicamento cloroquina é realizado pelo Ministério da Saúde, não havendo competência deste poder público municipal para sua aquisição. Além disso, reforçamos que não possuímos seu derivado, a hidroxicloroquina”, alegou ele.

Palmas

Palmas, no Tocantins, também se encontra entre as capitais em que o governo municipal não instituiu a política de tratamento precoce ou “Kit Covid”. A prefeita da capital tocantinense, Cinthia Ribeiro, defende as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que instituem que o único tratamento eficaz contra a Covid-19 é a vacina. Mas, há outros agentes que “remam contra essa maré”.

Em março deste ano, o promotor de Justiça Adriano Neves, da 28ª Promotoria do Patrimônio Público e Probidade Administrativa, ajuizou Ação Civil Pública contra a prefeita defendendo o tratamento precoce e tentando reverter medidas de restrição, as quais determinavam o fechamento de atividades não essenciais na cidade. Entre os argumentos do promotor estava o seguinte trecho: “É consabido que o tratamento preventivo e/ou precoce com fármacos de baixo custo que, há décadas, são utilizados nos combates a outros tipos de viroses e doenças autoimunes se mostraram eficientes no combate ao coronavírus, fato esse irrefutável”, diz ele no documento. A ação não foi para frente.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, defende o tratamento precoce e influencia decisões de governadores e prefeitos no enfrentamento da pandemia (Carolina Antunes Pr Fotos Públicas)
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