ESPECIAL | Eles fizeram a Amazônia de cobaia – Manaus: laboratório de experimento

Cloroquina e a vacina AstraZeneca: Manaus como laboratório do mundo (Reprodução/Internet)

Paula Litaiff – Da Revista Cenarium

MANAUS – A disseminação e a aplicação do tratamento precoce para a Covid-19, com medicamentos sem comprovação científica em Manaus, contribuíram diretamente para as mortes dos infectados nos primeiros meses deste ano. A informação faz parte de uma conclusão preliminar da Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) da Covid, no Senado, sob a presidência do senador Omar Aziz (PSD-AM). “Manaus foi usada como cobaia”, apontou Aziz, em entrevista exclusiva à REVISTA CENARIUM.

Prorrogada por mais três meses, a CPI da Covid retoma os trabalhos em agosto, após coletar 33 depoimentos de pessoas envolvidas na gestão da pandemia no Brasil. A constatação sobre a maior capital da Amazônia – Manaus tem 2,02 milhões de habitantes e uma área de 11.401 quilômetros quadrados – ter sido vítima de um experimento científico que deu errado não foi só do presidente da CPI, mas de pesquisadores em estudos preliminares.

De janeiro a fevereiro deste ano, a capital amazonense viveu uma das maiores crises sanitárias de sua história, ao ser a primeira cidade brasileira severamente atacada pelo segundo pico de infecção do novo coronavírus, transmissor da Covid-19. O afrouxamento no isolamento social associado à chegada de uma nova cepa mais agressiva no Amazonas, a P.1, foram apontados como causa para o aumento do número de infectados, que chegou a mais de 100 mil casos nos dois primeiros meses do ano.

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O aumento estrondoso de registros de Covid-19, em janeiro e fevereiro, fez faltar leitos, tanto nos hospitais públicos como nos particulares, além da trágica falha na reserva de oxigênio, que marcou o período. Sem prontos-socorros, os pacientes com suspeita da doença passaram a buscar as Unidades Básicas de Saúde (UBSs), administradas pela Prefeitura de Manaus. De lá, saíam com um receituário de remédios de eficácia não comprovada para a Covid-19 e muitos não faziam exames.

A distribuição do “Kit Covid” nas UBSs foi resultado de um acordo firmado entre o prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), e o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando visitou a cidade Manaus em janeiro. A “ordem” era aumentar a compra municipal de hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.

Com o tratamento precoce em andamento, Manaus registrou mais mortes na segunda onda da Covid-19, se comparado ao ano anterior. De 1º de janeiro a 2 de março de 2021, 4.430 pessoas perderam a vida para a doença, 1.050 a mais que 2020 no mesmo período, segundo dados da Fundação de Vigilância Sanitária (FVS/ AM). A falta de ar e parada cardíaca foram as principais causas registradas nas certidões de óbitos.

Receita dada em UBSs de Manaus e medicamentos de “Kit Covid” (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Pesquisa apontou piora

Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia) em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) apontou que pacientes que disseram ter ingerido ivermectina ou outros medicamentos para “prevenir” a Covid-19 apresentaram maiores taxas de infecção que as que não usaram nenhum medicamento.

O resultado faz parte de um estudo que analisou os fatores de risco da pandemia em Manaus e que foi remetido, em fevereiro deste ano, para publicação em uma revista científica internacional.
“Se eu acredito que essa droga previne, o que é que acontece? Eu baixo a minha guarda. Porque eu tomei a medicação que eu acredito que me protege”, explicou ao Jornal El País, a professora da Ufam Jaila Dias Borges, uma das autoras do artigo.

De acordo com informações da Ufam, um total de 3.046 moradores da cidade participaram do estudo. Os pesquisadores analisaram amostras de sangue dos voluntários para detectar a presença de anticorpos frente ao novo coronavírus, sinal de uma infecção prévia.

Pelo levantamento, os voluntários tiveram que preencher um formulário com informações pessoais. Isso permitiu conhecer o perfil socioeconômico das pessoas que já foram infectadas pelo vírus.

A pesquisa mostrou que 25,99% dos voluntários que afirmaram não ter tomado nenhum medicamento para prevenir a Covid-19 apresentaram anticorpos frente ao vírus.

Essa porcentagem subiu até 38,64% no grupo dos que afirmaram ter consumido algum tipo de remédio para evitar a doença. Os remédios mais usados foram, além do paracetamol, a ivermectina e a azitromicina, nenhum dos quais têm eficácia comprovada contra o novo coronavírus.

Reportagem especial

Além de Manaus, outras capitais da Amazônia também mobilizaram as redes municipais de saúde para a prescrição indiscriminada de medicamentos para o tratamento precoce. Levantamento feito pela REVISTA CENARIUM apontou que Porto Velho (RO), Boa Vista (RR), Macapá (AP), Rio Branco (AC), São Luís (MA), Belém (PA) e Cuiabá (MT) tiveram, em algum momento da pandemia, registros do “Kit Covid” nas unidades de saúde. Palmas permanece sendo a única que não se enquadrou nesse grupo, de acordo com a pesquisa.

“Kit Covid” contem hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina (Ricardo Oliveira/Cenarium)

Hoje, após um ano e meio da calamidade sanitária da pandemia, o negacionismo ainda não deu lugar à ciência. A REVISTA CENARIUM foi às ruas e verificou que muitos profissionais de saúde da rede municipal continuam receitando os medicamentos, mesmo após o próprio Ministério da Saúde ter admitido que são ineficazes. Nesta reportagem será possível conferir os detalhes desta investigação e as análises de especialistas em saúde sobre os efeitos danosos do uso indevido dos medicamentos e de analistas políticos sobre a politização da pandemia e os interesses particulares que, muitas vezes, sobrepõem-se ao coletivo.

(Catarine Hak/Cenarium)
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