Especial – Pandemia da Fome: ‘Não tem arroz, não tem feijão’

Mais de 3,6 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza na Amazônia Legal (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS – “Até agora, no momento, tem quatro ovo [sic] e tô [sic] vendo o que eu vou fazer, porque não tem arroz, não tem feijão. Eu sempre recebo doação, sempre minhas vizinhas ainda dão alguma coisa. Comida de outros dias que elas não comem, elas me dão”. Este é o relato de Maria das Graças da Silva, de 57 anos, sobre o que será servido para almoço em uma quarta-feira. Segundo ela, esse foi um dia de sorte, pois tinha o que comer. Geralmente, não tem.

Maria das Graças é uma das 3,6 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza na Amazônia Legal. Sobrevivendo com R$ 170 do Bolsa Família por mês, ela divide uma casa simples no Beco Jesus Me Deu, bairro São Jorge, Zona Oeste de Manaus, com dois netos, de 11 e 16 anos, de quem tem a guarda. Além das despesas com alimentação que, muitas vezes, não tem como pagar, ainda há um aluguel de R$ 250 que deve ser quitado todo mês, para não ter que ir morar na rua.

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Maria das Graças mora com dois netos em uma casa simples de madeira e sobrevive com R$ 170 mensais do Bolsa Família (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“A gente comia catando lixo, vivia de lixo. Às vezes, até comida azeda e estragada” Ágata Ferreira de Souza, de 25 anos.

“Não posso nem tocar nesse dinheiro do Bolsa Família. Aí tenho que me ‘virar nos 30’ para conseguir inteirar o aluguel. Eu peço ajuda das pessoas, das minhas vizinhas que têm mais condição do que eu. Eu fazia faxina, a patroa que eu fazia faxina pegou Covid-19 e o marido dela tá [sic] intubado. Ela que me ajudava, mas agora não tem cabeça pra nada”, contou Maria das Graças.

Natural de Boca do Acre, no interior do Amazonas, Maria das Graças contou, ainda, que chegou a Manaus há 45 anos. Estudou até a oitava série, quando engravidou do filho mais velho. Na realidade da periferia, viu um casal de filhos se entregarem às drogas e seu maior sonho é conseguir restituir sua família, assim como proporcionar uma vida digna aos netos.

“Meu sonho, em primeiro lugar, é ver meus filhos recuperados. Que Deus resti-tuísse minha família. Ele me deu só dois filhos e eu sinto falta deles aqui comigo. Tô [sic] criando esses dois e morro de medo que se bandeiem pro tráfico. Eu queria ter uma casa digna, ter comida para comer, mas a gente não tem isso”, contou.

A história de Maria das Graças se assemelha com a de outros moradores da periferia de Manaus. Em suas individualidades, a maioria se encaixa em um perfil que envolve êxodo rural, analfabetismo ou baixo grau de instrução e quase nenhuma perspectiva de oportunidades. São esses pontos que se repetem na vida de dois personagens que não se conhecem, mas têm muito em comum.

Manoel Henrique de Souza, de 56 anos, e Ágata Ferreira de Souza, de 25 anos, são residentes em Manaus, mais precisamente de bairros da Zona Sul da capital, mas talvez nunca tenham se encontrado na vida. Ele mora no Beco Inocêncio de Araújo, no bairro Educandos. Ela montou sua casa improvisada no meio-fio da Avenida Constantino Nery, uma das principais de Manaus.

Manoel mora com o filho José Henrique, de 11 anos, em uma quitinete de madeira onde ainda paga um aluguel no valor de R$ 200. Separado da esposa, que sofre com vício em drogas, está, há seis meses, sem trabalhar e ainda enfrenta um tratamento de tuberculose. Hoje, vive da ajuda de filhos e irmãos que doam desde o alimento até o dinheiro do aluguel. Analfabeto, também saiu do interior do Amazonas para tentar a vida na ‘cidade grande’.

Manoel Henrique está há seis meses sem trabalhar. Ele o filho José Henrique sobrevivem apenas com a ajuda de familiares (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“Eu queria ter uma casa digna, ter comida para comer, mas a gente não tem isso” Maria das Graças da Silva, de 57 anos.

“Toda a vida eu fui assim de trabalho, não tinha tempo. Quando morava no interior os meus pais não ligavam muito para esse negócio da gente estudar. Aí, depois que eu vim aqui para Manaus, eu estudei ainda, mas eu fui estudar à noite e tinha que acordar cedo para trabalhar no outro dia. A única oportunidade que a gente tem mais é quando a gente é pequeno, mas se  pai e a mãe não se interessar, depois que cresce fica difícil”, contou Manoel, que trabalhava como carregador de mercadorias na Feira da Manaus Moderna.

Assim como Manoel, diante de um futuro sem grandes oportunidades está também Ágata. Ela pode ser encontrada em um barraco montado no meio-fio. Com seu companheiro de 33 anos, ela conta que percorreu vários bairros da cidade, dormindo em cima de um papelão, até se fixar no local.

“A gente dormia em vários lugares aqui em Manaus, dormimos no chão, no Parque 10, Cidade Nova, sempre dormindo na rua, né, jogados. Ele [o companheiro] começou a reparar carro aqui no Sinetram [Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Amazonas]. Aí veio essa pandemia e não tava dando mais carro. Aí, comecei a dormir aqui no chão. Primeiro, era só eu que dormia aqui, depois ele começou a dormir aqui comigo. Chegou um dia que eu comecei  a colocar a lona em cima do colchão para não molhar”, contou ela.

Órfã de pai e mãe desde os 14 anos, Ágata conta ainda que estudou até a oitava série, quando interrompeu os estudos. Foi morar com a avó materna, que faleceu em dezembro do ano passado. Desde lá, saiu de casa e mora na rua. “Já não vivia mais em casa praticamente, porque era muita briga, muito conflito com a família, as minhas tias e meus tios não gostavam de mim. Para não ficar dentro de casa com intriga e confusão, eu preferi vim para a rua”, lembrou, com tristeza.

Ela ainda lembrou que chegou a buscar alimentos no lixo e lamenta por não ter conseguido, assim como Maria das Graças e Manoel, nenhum benefício social oferecido pelo governo federal, estadual ou até mesmo da prefeitura.

“Estamos morando aqui porque não temos uma ajuda. Tentamos auxílio, tentamos o auxílio-aluguel, mas nunca conseguimos nada. Fomos pelas secretarias, não ajudavam a gente nem com uma cesta básica. A gente comia catando lixo, vivia de lixo. Às vezes, até comida azeda e estragada. Então, a vida era muito difícil, não tinha fogo e nem panela para fazer algo”, relembrou.

“A única oportunidade que a gente tem mais é quando a gente é pequeno, mas se o pai e a mãe não se interessar, depois que cresce fica difícil” Manoel Henrique de Souza, de 56 anos.

Recentemente, Ágata conseguiu um emprego temporário na função de serviços gerais de uma secretaria estadual e já procura um apartamento para alugar com companheiro.

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