Especialistas analisam ‘Que Horas Ela Volta?’; filme reproduz avanços dos anos de governo Lula e Dilma

Especialistas comentam desigualdades representadas em filme (Reprodução)

Malu Dacio – Da Revista Cenarium

MANAUS – ‘Que Horas Ela Volta’, longa premiado, dirigido por Ana Muylaert, estrelado pela brilhante Regina Casé e lançado em 2015, voltou ao catálogo da plataforma de streaming Netflix, no último dia 28 de fevereiro. Sim, esse texto contém spoilers.

Apesar dos 7 anos que perpassam seu lançamento, o filme é uma reprodução clara do que o Brasil era nos tempos em que o Partido dos Trabalhadores (PT) governava o Brasil, sem contar dos impactos causados na vida de muitos brasileiros com a chegada do ex-Presidente Lula e, posteriormente, Dilma, ao poder.

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A REVISTA CENARIUM procurou especialistas para entender o que a produção audiovisual mostra e seus significados. Os profissionais analisaram as questões envolvendo as desigualdades sociais retratadas no filme.

O professor e sociólogo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Luiz Antônio Nascimento, fez uma viagem no tempo e foi até o Brasil Império para analisar a lacuna causada pela desigualdade. Ele explica que tanto a classe média quanto uma boa parte das frações das elites, desde o Império, se reproduzem apropriando-se da máquina pública e do Estado. E toma, por exemplo, as escolas públicas.

“Até os anos 80 e começo dos anos 90, a universidade pública esteve a serviço exclusivo dos interesses das elites e da classe média. As classes populares não chegavam aos bancos das faculdades públicas, de jeito nenhum. E um modelo de gestão, de vestibular, etc, impedia que qualquer estudante pobre, da periferia, conseguisse chegar ali”, explica.

Ele salienta que não foi obra do PT e nem do Lula, mas que a Constituição de 88 começou a apontar para a necessidade de uma escola pública universal, e é a CF/88 que define o financiamento da educação pública brasileira, assim como definiu o financiamento da saúde pública; “e passou a estabelecer investimentos mínimos que o Estado, a União e os municípios deveriam fazer com a educação. E isso fez com que ela se popularizasse. Mas, quando a escola pública passou a se popularizar, passou a ser ofertada, universalmente, ela deixou de ser uma ferramenta importante de reprodução do interesse das elites”, definiu Luiz.

Ódio ao PT

“Uma parte importante do ódio que a classe média tem do PT, do Lula e da Dilma, mas, sobretudo, do PT e de Lula, os dois que iniciaram esses processos, é porque aqueles setores do Estado brasileiro, as elites e a classe média, entendiam como se fossem delas. Então, o ódio contra o PT é muito claro, é um ódio de classe mesmo, não é um ódio político-partidário, é de classe. Porque aquele bem que era apropriado privadamente por um setor da sociedade passou a ser compartilhado para toda a sociedade. Pobre, preto, da periferia, LGBTQIA+ e agricultor. Então, o ódio aparece daí”, salienta.

O professor parafraseia ‘Cidadão’, de Zé Geraldo. A música conta a saga de um pedreiro que constrói os prédios. Ele não pode morar, ele constrói a escola e os filhos não podem estudar, ele constrói a igreja, não pode entrar e não pode rezar.

“É exatamente isso. As classes populares fabricam os carros, nas fábricas, constroem as casas, as escolas, e não podem ter acesso. As mulheres cuidam e alimentam os filhos e as filhas da classe média e da elite e não tem quem cuide dos filhos delas. Levam os restos de comida para casa; não tem jornada de trabalho adequada. Isso foi uma das ações do Lula que desagradou à classe média: exigir que as trabalhadoras domésticas tivessem trabalho com carteira assinada, com jornada de trabalho, com direitos trabalhistas”, lembra.

“A elite e classe média europeia e estadunidense estimularam o desenvolvimento, crescimento, produção da ciência, da tecnologia e o fortalecimento da democracia, diferente da elite brasileira, que, inclusive, sempre conspirou contra qualquer possibilidade emancipatória e sempre estimulou o atraso”, criticou.

‘Condições melhores de vida’

De acordo com o jornalista, mestrando em Antropologia Social, e crítico de cinema do Cine Set, Lucas Vasconcelos, as desigualdades sociais são bastante explanadas durante todo o filme. Lucas explica que no primeiro ato do longa é perceptível o quanto de resquícios do êxodo rural estão presentes na atualidade.

“Em vez de pessoas em contextos rurais migrarem para a cidade, vemos pessoas inseridas em contextos com poucas oportunidades de emprego, na região Norte/Nordeste, migrando para os grandes centros urbanos à procura de condições melhores de vida”, diz o jornalista.

A definição, segundo Lucas, diz respeito tanto à personagem de Regina Casé, quanto à personagem de sua filha Jéssica, interpretada por Camila Márdila. “Ambas saem do Nordeste para a capital paulista em busca de ‘novas chances’. A personagem de Regina Casé visando conseguir dinheiro para sustentar a família (que no caso é sua filha) que ficou na cidade natal. Já sua filha viaja para São Paulo para prestar vestibular em uma das universidades mais concorridas do País. Certo que, futuramente, vemos que os contextos das duas são bem mais parecidos do que apresentados inicialmente”, diz Lucas, sem dar spoilers.

Contextualizando, tanto a filha de Val (Regina Casé) como o filho de sua patroa estão prestando o mesmo vestibular. Apesar de não ser para o mesmo curso, ambos realizam a mesma prova, pois, a primeira etapa é a etapa de conhecimentos gerais e apenas a filha da personagem de Regina Casé passa para a segunda etapa.

Segundo o jornalista, é um bom exemplo para demonstrar a diferença de realidade de muitos estudantes no Brasil.

“Ressalto que aqui não se trata de meritocracia, pois é nítido que a filha de Regina Casé estudou mais do que o filho da patroa. Mas, sim, de perceber as diferentes realidades que ambos vivem. É extremamente necessário sistemas de ingresso ao ensino superior público que possam equiparar essas diferenças sociais. A filha da personagem de Regina Casé é uma das poucas que conseguiu ir contra as estatísticas de diversos jovens que não possuem as mesmas oportunidades que jovens de classe média alta, por exemplo”, conta.

Analisando, audiovisualmente, o jornalista afirma que a desigualdade também está apresentada de forma mais implícita, em duas cenas. A primeira é na cena em que a personagem de Regina Casé cria coragem para pular na piscina dos patrões.

“Pois, para ela, existe uma regra moral que implica em não poder usar a piscina. Lógico que a relação patrão x empregado nesse contexto fala mais alto. Mas, simbolicamente, a coragem dela pular na piscina representa toda uma ruptura de pessoas de classe baixa entrando em camadas sociais onde apenas pessoas com grande poder aquisitivo podem transitar. E, por último, a outra cena que também reforça essa ideia é quando a personagem de Regina Casé mostra para a filha o jogo de xícaras e pratos em preto e branco que deu para a patroa, mas ela nunca utilizou”, finaliza.

Fotografia transmite mensagem

Com mais de 7 anos de contribuição para o cinema, Caio Pimenta é editor-chefe do ‘CineSet’. Para o jornalista, ‘Que Horas Ela Volta?’ é um filme que joga as mudanças sociais apresentadas no Brasil, ao longo dos anos 2000 e parte do ano de 2010, dentro do ambiente de uma casa de classe alta de São Paulo e o microcosmo ali existente.

Ele explica que, inicialmente, é possível ver um Brasil tradicional com a personagem da diarista vivida pela Regina Casé sendo submetida a uma vida subserviente à família.

Caio destaca tanto a diretora Anna Muylaert, como a diretora de fotografia Barbara Alvez e o diretor de arte Thales Junqueira que são muito felizes em trazer este jogo de intimidade com distanciamento através dos enquadramentos.

“Eles conseguem estabelecer os espaços daquela relação – as paredes, a iluminação dos espaços, as composições dos cenários (a sala e demais locais usados pela família são amplos e de fácil acesso, enquanto o quartinho de Val fica nos fundos e é apertado), eles delimitam estas marcações da relação de poder”, explica.

“Isso acaba por ser quebrado com a chegada da filha, interpretada por Camila Márdila, que não apenas cresceu em outro lugar como vem de uma nova geração que deseja uma vida melhor dos pais. Neste choque, que culmina na passagem do vestibular dela, que o filme constrói de forma simbólica esta transformação abortada a partir de 2016”, defende Caio.

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