‘Estado é violador de direitos’, diz líder indígena do Pará após ter proteção negada
Por: Fabyo Cruz
19 de setembro de 2025
BELÉM (PA) – A liderança indígena do Pará Miriam Tembé afirmou que o Estado é o maior violador de direitos e não demonstra interesse na proteção de defensores de direitos humanos no Estado. A declaração foi feita durante o lançamento do Comitê Paraense de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CPDDH), em 12 de setembro, na sede do Ministério Público Federal (MPF), em Belém (PA).
“O Estado, infelizmente, é o maior violador dos nossos direitos. O Estado não tem interesse de fazer a proteção de defensores de direitos humanos”, disse a líder indígena aos presente no evento.
Em sua fala, Miriam questionou a eficácia do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo do Pará. De acordo com a liderança indígena, os pedidos de apoio feitos por ela têm sido sistematicamente negados. “Eu tenho feito vários pedidos de proteção de ronda e o Estado negou. O Estado disse que não é de competência dele fazer a proteção de defensores indígenas em territórios indígenas. Como não é se o programa é do Estado?”, indagou.
O ponto central da denúncia foi a ausência de confiança nas instituições de segurança pública. Ela afirmou não se sentir segura sob escolta de policiais civis, militares ou federais, mencionando que esses agentes informam terceiros sobre a localização, os deslocamentos e as ações dos protegidos. Segundo Miriam, informações repassadas ao Estado por defensores foram posteriormente utilizadas de forma a comprometer a integridade dessas pessoas.
Contar com proteção de policiais civis ou militares ou federais, não dá para contar. Eu não sinto confiança. Porque eles são os primeiros a informar onde nós estamos, para onde nós vamos e o que nós estamos fazendo”, disse, apontando que informações confidenciais entregues ao Estado já foram utilizadas contra os próprios defensores em um esquema de espionagem.

Para ela, a saída está em uma mudança profunda na formulação da política. “Está na hora de nós sentarmos nessa mesa para, juntos, construir essa política de proteção às nossas vidas. Ou a gente participa dessa construção, ou essa política vai continuar sendo falha”, declarou.
Contexto de violações
A denúncia recente do MPF, que apontou o monitoramento ilegal de lideranças indígenas e quilombolas pelo governo estadual, intensificou o sentimento de insegurança. Algumas dessas pessoas estavam sob proteção do PPDDH quando foram espionadas. A admissão da vigilância por um alto funcionário do governo foi citada como exemplo da fragilidade da política de proteção.
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O lançamento do CPDDH ocorre em um cenário de violência crescente contra lideranças e comunidades. Levantamento das organizações Terra de Direitos e Justiça Global aponta que o Pará registrou 103 ocorrências de violações contra defensores de direitos humanos entre 2023 e 2024, o maior número do País.
Fragilidades na proteção
O Estado apresenta graves fragilidades na proteção de defensores ambientais, segundo o Índice de Democracia Ambiental (IDA), divulgado, no dia 16 de julho deste ano pelo Instituto Centro de Vida (ICV) e pela Transparência Internacional – Brasil. O Estado obteve 20 pontos nesse quesito, que é considerado “ruim”, mesmo contando com um programa voltado à proteção dessas lideranças. O relatório aponta a falta de diversidade no colegiado responsável, ausência de protocolos de atuação para agentes de segurança e mecanismos pouco eficazes para garantir a proteção de quem atua em defesa da terra e do meio ambiente.
Apesar dessa vulnerabilidade, o Pará se destacou em “Acesso à Justiça Ambiental”, com 60,3 pontos, um dos melhores índices entre os Estados da Amazônia Legal. O levantamento aponta que o Estado possui estruturas especializadas no Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública (DPE-PA) para lidar com questões ambientais e agrárias. No entanto, ainda não há delegacias ambientais nem iniciativas voltadas para ampliar o acesso à justiça em áreas remotas.
No geral, o Pará recebeu a classificação “regular” no IDA, refletindo avanços institucionais importantes, mas também lacunas significativas na proteção de defensores ambientais e na participação social. O resultado mostra que, ainda que tenha desenvolvido instrumentos legais e estruturas de atendimento, a consolidação de uma democracia ambiental efetiva no Estado enfrenta desafios importantes.
Vozes reforçam críticas
A fala de Miriam ecoou entre diferentes movimentos sociais presentes. O representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Moisés Costa, disse que “o Estado, já há muito tempo, não protege a gente” e classificou a lógica individual do programa estadual como uma “distorção muito pesada” para coletivos como o MST.

Lideranças como Auricélia Arapium e Alessandra Korap também relataram experiências em que a presença do Estado aumentou a vulnerabilidade, reforçando a percepção de que a política atual mais expõe do que protege.
Entre os quilombolas, a liderança Josias Dias dos Santos, o Jota, resumiu: “O governo é e sempre foi o nosso maior violador dos nossos direitos”. Já Polliane Barbosa Soares, do Ministério dos , defendeu a importância de descriminalizar estratégias próprias de proteção comunitária, muitas vezes as únicas capazes de garantir a sobrevivência diante da falha estatal.
Resistência organizada
Mesmo diante desse cenário, Miriam Tembé destacou a necessidade de construir soluções coletivas. A fala dela foi alinhada ao propósito do novo Comitê: fortalecer redes, articular movimentos sociais e ampliar os mecanismos de proteção fora da dependência exclusiva do Estado.
Segundo Claudelice Santos, do Instituto Zé Cláudio e Maria (IZM), o CPDDH nasce justamente dessa contradição. “O Pará é um Estado onde há muita violação de direitos humanos, principalmente advinda do Estado. Ao mesmo tempo, nós temos organizações da sociedade civil e movimentos sociais extremamente fortes e articulados. Então, o Comitê nasce exatamente desse lugar de resistência”, disse.
O grupo, que atua desde 2022, apresentou dois instrumentos durante o evento: a Carta de Princípios e Adesões ao CPDDH, que define os compromissos políticos e éticos do coletivo; e a Cartilha de Proteção às Defensoras e aos Defensores de Direitos Humanos, material pedagógico criado para popularizar estratégias de autoproteção em linguagem acessível.
Caminhos institucionais
A denúncia de Miriam sobre a fragilidade do PPDDH também encontrou eco em propostas institucionais. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Pará (OAB-PA), o Instituto Universidade Popular (Unipop) e a Assembleia Legislativa do Estado (Alepa), anunciaram a criação de um Grupo de Trabalho para revisar ou substituir a legislação estadual, de modo a incluir inovações como a proteção coletiva e territorial.
O procurador-chefe do MPF no Pará, Felipe de Moura Palha, reforçou que o fortalecimento da sociedade civil é essencial. “Não há como garantir a segurança de defensores de direitos humanos e ambientalistas sem uma sociedade civil forte, vigilante e empoderada”, afirmou.
O que diz o Governo do Pará
A CENARIUM solicitou esclarecimentos ao Governo do Pará sobre as declarações feitas durante o lançamento do Comitê Paraense de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CPDDH). Confira abaixo, na íntegra, a nota enviada pelo Estado:
“A Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh) informa que os pedidos feitos no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) são recebidos pela entidade executora conveniada, o Instituto Universidade Popular (Unipop), e analisados por um conselho deliberativo formado por representantes da sociedade civil e do Estado.
Quando há solicitação de proteção por parte de defensoras e defensores, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) é acionada para adotar as medidas necessárias. Nesses casos, o mapeamento e a análise de risco são realizados pela Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal (Siac), e a execução de escoltas e rondas policiais é responsabilidade da Polícia Militar.
A proteção dos dados pessoais e das informações estratégicas das defensoras e defensores é princípio inegociável do PPDDH. Até o momento, não há registro de vazamento de informações de pessoas acompanhadas pelo programa, que atualmente atende 178 beneficiários.
A Seirdh também tem buscado ampliar e descentralizar as ações do programa. Já estão em funcionamento polos regionais em Marabá e Santarém, e estão previstas novas unidades em Altamira, Itaituba e na região do Marajó, ampliando a presença institucional em áreas de maior vulnerabilidade.
A Secretaria reconhece os desafios enfrentados nos territórios indígenas, ressaltando que a atuação das forças de segurança nesses espaços é de competência federal, sob responsabilidade da Polícia Federal”.