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‘Estratégia violenta’, dizem especialistas sobre proibição da linguagem neutra em Rondônia
O governo Bolsonaro proibiu o uso da chamada "linguagem neutra". (Arte: Ygor Fabio Barbosa)
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25 de outubro de 2021
Iury Lima – Da Cenarium
VILHENA (RO) – Especialistas ouvidos pela CENARIUMrepudiaram a proibição do uso da linguagem neutra nas escolas públicas e privadas de Rondônia, por meio da publicação da Lei nº 5.123/2021, derivada de um projeto do deputado estadual Sargento Eyder Brasil (PSL). “Eu vejo como uma estratégia antidemocrática e violenta mesmo, porque são formas de dizer para um grupo de pessoas que essas pessoas não podem ser quem elas são”, lamentou el psicólogue e professore universitárie não binárie, Vincent Abiorana, que pediu para ser identificade de forma neutra.
Ao sancionar a lei, o governo do Estado diz que o documento visa estabelecer medidas protetivas ao direito de aprender a norma culta da língua portuguesa, resguardado aos estudantes. A decisão vale para toda a educação básica da rede pública estadual, desde o ensino infantil ao ensino médio, sendo adotada também por instituições particulares e concursos públicos.
‘Uma afronta’, segundo as autoridades
Em resposta àCENARIUM, Eyder Brasil reafirmou o discurso de que considera a linguagem neutra uma “afronta” à norma culta do idioma brasileiro. “Estou muito feliz com a sanção da Lei 5.123, uma propositura nossa, um projeto de lei nosso, apresentado aqui na Assembleia Legislativa (…) aquela historinha de dizer que não é “todos” nem “todas”, é “todes”, de dizer que não é “ela” nem “ele”, é “elu”, enfim, a partir de agora, esse uso dessa forma de linguagem está proibido no Estado de Rondônia”.
O deputado ainda complementou agradecendo ao governo estadual pela sanção da lei considerada desastrosa por estudiosos e pela comunidade LGBTQIA+, pois, na visão dele, o governador Marcos Rocha (em transição para o União Brasil) “teve a sensibilidade de entender que isso [a linguagem neutra] é uma afronta à norma culta da língua portuguesa”.
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Por meio de nota, o governo rondoniense destacou que as instituições ou professores que ensinarem “conteúdos adversos” sofrerão sanções.
Outra face da moeda
Apesar dos intolerantes posicionamentos da Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO) e do governo estadual, a linguagem neutra nada tem a ver com qualquer tipo de afronta, mas sim, com respeito, acolhimento e dignidade das pessoas não binárias (que não se identificam com nenhum dos gêneros), o que também defendem os profissionais da área da linguística.
“A língua é, na realidade, maleável, dinâmica, ela possibilita vários usos, inevitavelmente. A norma culta, por outro lado, é um dos possíveis usos que a escola deve ensinar, porque é um uso de prestígio. A escola deve ensinar a norma culta. A linguística não é contra isso. Mas, não se pode querer dissimular ou querer apagar que a língua é variável”, avaliou o doutor em Estudos Linguísticos e professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Lucas Khalil.
Khalil considera como “muito falacioso” o argumento de que a lei foi criada apenas para garantir que os estudantes tenham acesso e aprendam a norma culta da língua portuguesa de maneira exclusiva. “Quem é professor, que trabalha com português, com redação, sabe que um aluno melhora a sua escrita a partir da própria escrita, da refacção, da correção. Então, se os parlamentares quisessem realmente agir em prol da melhoria da educação e do ensino da língua portuguesa, especificamente, eu tenho algumas sugestões e uma delas é, por exemplo, reduzir o número de alunos por sala”, ponderou o doutor em Estudos Linguísticos.
“Muitos professores têm, por exemplo, oito turmas de cinquenta alunos, até mais, mas nesse exemplo são 400 alunos. Vamos pensar em um texto por semana: é praticamente inviável que o professor acompanhe essa correção de um modo que seja eficaz. Então, os parlamentares podem pensar em outros projetos para diminuir o número de alunos por sala. Isso gera custo, claro, mas tem que se pensar em educação não como um prejuízo, mas, sim, como investimento”, completou o especialista.
Fomento ao preconceito e sofrimento
De acordo com el piscólogue Vincent Abiorana, a lei que já está em vigor pode acarretar em muito mais episódios de bullying, preconceito, exclusão e isolamento no ambiente escolar. “Estamos em um mundo que nos ensina o tempo todo como ser homem e mulher e aí as pessoas não binárias, principalmente, já enfrentam todas as dificuldades de se afirmar diferente desse jeito patriarcal de ser. E pior, quando a gente chega na escola, que deveria ser um espaço laico, público e democrático, conforme prevê a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, enfim, todos os marcos regulatórios da educação, a gente encontra, infelizmente, uma lei que quer impor um tipo de moralidade para toda população”, declarou.
“Se vende o discurso de que a gente, LGBTQIA+, de que queremos impor o nosso jeito de ser, mas para onde você olha no mundo, para onde você olha nas mídias e nos discursos oficiais, a gente não é maioria, então a gente está tentando o mínimo, do mínimo, do mínimo”, lamentou Abiorana.
Variação também é riqueza cultural
Para a doutora em Linguística e Língua Portuguesa, Nair Ferreira Gurgel do Amaral, a linguagem neutra não oferece risco ou prejuízo algum à norma padrão da língua portuguesa (a que geralmente usamos), como ela prefere chamar, citando que comparar o dialeto neutro com a norma culta, em sua forma erudita, “é discriminação”.
Gurgel, que também é professora aposentada da Unir, diz que esta nova forma de se comunicar é utilizada apenas pelo grupo para o qual é conveniente, por isso a inexistência de perigo, além de avaliar que a todas essas variações fazem parte da evolução das sociedades e têm a ver com os aspectos culturais de cada localidade.
“Acho que a linguagem neutra, assim como todas as línguas humanas, todas as formas de se comunicar mudam, né, e, frequentemente, podemos observar como pessoas de diferentes lugares e classes sociais, escolaridades distintas, usam essas formas particulares”, explicou a doutora.
“Nós, linguistas, estudiosos da linguagem, valorizamos os falares, as variações da linguagem de toda ordem né, regional, social e tal, que são incorporadas ao nosso vocabulário ao longo do tempo”, concluiu a especialista.
Confira a reportagem da Cenarium sobre o caso para o Jornal da Cultura
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