Estudo do Unicef mostra como narcogarimpo afeta vida de jovens Yanomami


Por: Ana Cláudia Leocádio

15 de outubro de 2025
Estudo do Unicef mostra como narcogarimpo afeta vida de jovens Yanomami
Área de garimpo na Terra Indígena Yanomami, em Roraima (Christian Braga/Greenpeace)

BRASÍLIA (DF) – O “Estudo Infância e Juventude Yanomami – 2025”, divulgado nesta quarta-feira, 15, mostra como a ação do crime organizado impactou os jovens em regiões da Terra Indígena Yanomami (TIY), principalmente depois da introdução do narcogarimpo pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Além do consumo de drogas, como cocaína e pasta-base, essa chegada às aldeias também ameaça o modo de vida da juventude e suas relações com os demais membros da comunidade.

Realizado com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), da União Europeia e da Hutukara Associação Yanomami, a ideia do estudo surgiu durante a crise sanitária e humanitária no território, em janeiro de 2023, quando uma força-tarefa federal foi enviada para Roraima para atender os indígenas na área de saúde e realizar a desintrusão dos garimpeiros que ocupavam extensa área da terra indígena.

Conduzido pelos antropólogos Ana Maria Machado e Marcelo Moura, o levantamento é um mergulho através de pesquisas bibliográficas, conversas com os Yanomami e outros dados disponíveis, que pudessem criar canais de tradução entre o pensamento da etnia e o mundo exterior para que entendam a infância desse povo de modo diferente.

Indígenas em situação de vulnerabilidade na capital Boa Vista em fevereiro de 2023 (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

Segundo o chefe de Emergência, Água, Saneamento e Higiene, Clima, Meio Ambiente e Redução de Riscos para Desastres do Unicef, Gregory Bulit, após se constatar que 75% da população Yanomami é formada por crianças e adolescentes, o fundo decidiu realizar o estudo, com informações que possam
ajudar organizações gestoras profissionais para trabalharem essas populações. Para Bulit, a cultura e o modo de vida dos Yanomami dependem do bem-estar dessa geração e das próximas.

As 97 páginas do estudo buscam mostrar os Yanomami em todas as dimensões para entender quem são esses jovens pela perspectiva deles mesmos. O primeiro desafio dos autores foi como nomear o público-alvo do relatório, que na perspectiva não indígena é conceituada como crianças e adolescentes, enquanto para os Yanomami há termos específicos para se referir ao estágio geracional e ao gênero. Por isso, os antropólogos optaram por traduzir os termos hiya (masculino) e moko (feminino) na categoria de jovens.

Na área de saúde, o relatório reforça que doenças como malária, respiratórias e desnutrição constituem-se nos maiores problemas, afetando sobretudo as crianças, por causa do colapso do sistema de saúde e ação do garimpo ilegal, que polui os rios com mercúrio, devasta as florestas, afugenta as caças e alicia os jovens para a atividade.

Delimitação da Terra Indígena Yanomami (Reprodução/Estudo Infância e Juventude Yanomami – 2025)

Outra constatação foi o declínio no sistema educacional desde que foi repassado para a gestão do Estado, após a demarcação do território, em 1992, durante o governo de Fernando Collor. Em 2022, das 31 escolas estaduais, 12 foram fechadas, o que trouxe prejuízos para a população Yanomami. Segundo os antropólogos, é importante que se crie uma política educacional direcionada especificamente para os Yanomami porque a educação também tem sido o meio de fazer a interlocução com o mundo em transformação. Marcelo lembra que, muitas lideranças atuais em atividade, foram educadas no sistema da década de 1990, e as novas gerações também precisam ser preparadas para desempenhar esse papel.

Como o PCC afetou os Yanomami

Além dos aspectos culturais, o relatório mostra como a violência tem afetado os jovens Yanomami (Hiya/Moko Thëpë) de maneiras complexas e interconectadas, principalmente devido aos impactos da segunda invasão garimpeira, que ocorreu entre os anos 2016 e 2022, que resultou em desestruturação social, aliciamento, exploração sexual, aumento de doenças e mortes.

A invasão garimpeira, mostra o relatório, foi seguida da entrada também da organização criminosa paulista PCC, que migrou para o garimpo, após as rebeliões que ocorreram nos presídios em alguns estados da região Norte, em 2017, segundo explicou Ana Maria Machado.

“Teve uma combinação forte, que foi um governo que apoiava ou permitia a entrada do garimpo com o crescimento do narcogarimpoe a expansão do PCC para o Norte. Isso na terra Yanimami foi avassalador em algumas regiões, mas hoje com a retirada, tem que ver a estimativa entre 80 a 93% dos garimpeiros, isso aí naturalmente esses jovens não estão mais expostos ou ligados ao narcogarimpo, como estavam mais ou menos até 2022, 2023”, explicou Machado, que trabalha com os Yanomami há 18 anos.

Além das consequências na saúde, com o aumento das doenças como malária e desnutrição, os criminosos também começaram a aliciar os jovens para trabalharem no garimpo ilegal, com acesso a bebidas, drogas e armas. Isso afetou a vida nas aldeias, porque essas pessoas deixaram de contribuir com a atividade coletiva dos indígenas, além de gerar conflitos com os anciãos.

“Isso gera uma série de distúrbios não só pela atração desses jovens. A mão-de-obra mesmo desses jovens, que saem da comunidade, que deixa de produzir no contexto interno da comunidade para gerar o bem-estar coletivo e passa a viver longos períodos no garimpo e deixa de contribuir em casa”, afirma Marcelo Moura.

Vista aérea de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (Reprodução/Força Aérea Brasileira)

Outro ponto foram os relatos sobre de que forma as drogas e bebidas, e associado a elas, a entrega de armas, afetou a juventude e gerou efeitos importantes na organização política das comunidades.

“A gente tem as lideranças, que são as pessoas mais velhas, os homens adultos mais velhos, que passaram a se ver contrariados e confrontados por essa juventude que que estava sendo estimulada e armada pelos garimpeiros, justamente para pressão na comunidade e na região em prol das atividades do garimpo”, constatou o antropólogo.

Além das ameaças às lideranças, esse envolvimento dos jovens com o garimpo promove também o afastamento das tradições, a presença do garimpo intensificou a violência física e o crime organizado, com aumento de agressões e mortes com armas de fogo, por exemplo.

O estudo também lembra que, em 2021, a entidade Hutukara denunciou a morte por afogamento de duas crianças, de 1 e 5 anos, após a confusão e fuga provocada por um ataque de criminosos à comunidade Palimiu. Também foram denunciadas outras duas crianças mortas afogadas por terem sido sugadas pelo motor das dragas de um garimpo que operava próximo à comunidade Macuxi Yano.

E as consequências avançam para a exploração sexual e prostituição, tendo as meninas como principais vítimas dos garimpeiros, com relatos de abusos, que muitas vezes deixam como saldo o abandono delas grávidas, e que se tornam mães solteiras. O relatório também mostra que a violência sexual implicou no aumento das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), como sífilis, gonorreia, herpes genital e HIV, impactando a saúde das mulheres Yanomami.

Políticas voltadas para a juventude

O estudo conclui com indicações de políticas voltadas para a educação em várias frentes, não apenas a escolar propriamente dita. “A gente tem visto, por exemplo, a Hotukara Associação Yanomami fazendo formações ensinando os jovens a produzir audiovisual, a produzir suas próprias denuncias, seus próprios vídeos sobre sua própria cultura. É uma alta reflexão sobre esses impactos que vêm com esses jovens formados nessas novas ferramentas”, avalia Marcelo Moura, sobre como os jovens vêm usando das tecnologias do mundo não-indígena como ferramentas de apoio às suas lutas.

Há o incentivo de drones para fazer a vigilância do território, que atualmente conta com a atuação de jovens que já chegaram a ser cooptados pelo garimpo e que atuam agora para proteger a terra indígena.

O estudo também conclui que as ações futuras devem ser sensíveis à cultura e direcionadas para garantir uma vida digna às novas gerações dos Yanomami, que respeitem sua cosmovisão e modos de vida, que já se diferencia desde a forma como eles acreditam que a pessoa é concebida no ventre da mulher, por exemplo. Isso sem falar em garantir o básico: água limpa, educação e assistência de saúde de qualidade e segurança, para que possam desenvolver-se em uma terra livre de invasores.

Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Os autores do levantamento também recomendam que, “qualquer ação a ser realizada na Terra Indígena Yanomami deve ocorrer em diálogo com as associações que pactuaram e produziram juntos o Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (PGTA)269, onde descrevem detalhadamente todas as propostas sobre o que é necessário para que vivam bem (hoje e no futuro) na maior terra indígena do Brasil”.

“É importante também escutar as crianças e os jovens Yanomami, tentando entender seus anseios e desejos em um mundo de transformações rápidas e complexas. É fundamental que a grande demanda desses jovens por escolarização, por acesso a novos conhecimentos como o uso de novas tecnologias, seja levada a sério, sobretudo como ferramentas na luta por respeito por sua dignidade, pela integridade de seu território e pelo direito de preservarem sua cultura e seus modos de vida”, conclui o estudo.

Dados sobre os Yanomami
  • População: 31 mil pessoas
  • Porcentagem de jovens: 75%
  • Localização: Norte do Brasil (Amazonas e Roraima) e sul da Venezuela
  • Distribuição: aproximadamente 370 comunidades no Brasil
  • No Amazonas: São 10.280 indígenas, distribuídos nos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Vivem na calha do rio Demini e seus afluentes e estão presentes nas regiões de Maturacá e Marauiá.
  • Em Roraima: São 16.872 indígenas, cujo território coincide com os limites dos municípios de Alto Alegre, Amajari, Caracaraí, Iracema e Mucajaí. A capital Boa Vista é o centro de referência para atividades políticas e atendimento em saúde.
  • Línguas: falantes de 6 línguas diferentes e 16 dialetos pertencentes à família linguística Yanomami
  • Extensão da TI: 9 milhões de hectares de floresta amazônica preservada
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Editado por Adrisa De Góes

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