Estupro de indígena: a face abjeta e infame da violência sexual


Por: Iraildes Caldas

18 de novembro de 2025

As relações de poder e as construções sociais de gênero desempenham um papel central na perpetuação das violências contra a mulher, na medida em que a dominação masculina é tolerada e a subordinação feminina é naturalizada. As relações de gênero constituem-se numa das formas de movimento de poder na sociedade. Trata-se de relações sociais que se apresentam como dinâmicas de poder e não fruto de posições estáticas e polarizadas. Não são determinadas pelo fator biológico, mas situadas no âmbito histórico e cultural dessas relações. Foucault (2024) lembra que as relações de poder não se restringem às instruções normais, mas estão presentes em todas as esferas da vida cotidiana, operando de forma capilar e invisível. A violência contra a mulher é uma expressão das relações de poder que se perpetuam por meio de estruturas sociais que normatizam a subordinação de grupos específicos, como as mulheres. Mbembe (2018) assinala dizendo que essa dinâmica de poder se aproxima da necropolítica, em que a soberania é exercida pelo controle sobre a vida e a morte, sendo a violência um mecanismo de dominação que define quem pode viver e quem deve morrer, ou, no caso das mulheres, quem deve sofrer.

Se o grupo de mulheres é composto por uma minoria social ou um segmento humano, em desvantagem frente ao poder das estruturas sociais, imagine as mulheres indígenas que figuram como um grupo étnico mais discriminado e vulnerabilizado dentro dessas mesmas estruturas. O estupro de mulheres indígenas é abjeto e infame, um crime covarde, que vilipendia não só o corpo, mas o ser e a alma da mulher. É um ato bárbaro que humilha, deprecia e torna o ser da mulher desprezível, atingindo de forma indelével a sua dignidade humana. É uma dor indizível que faz chorar a alma, uma forma degradante de dizer à mulher indígena: você não é nada, a morte é o seu galardão. Um ser matável, como diz Giorgio Agamben em O Homo Sacer (2010). A necropolítica não só submete as mulheres indígenas e negras à morte física, mas leva também à morte a alma dessas mulheres. O homem, por si, já acha que exerce domínio sobre a mulher e, ao fazer uso de uma farda de xerife, vê-se investido de um poder. Um insano poder de dominação. Não se trata exatamente de desejo sexual pelo corpo da mulher indígena, mas sim de usufruir do poder do macho, do predador, como se o estupro contumaz fosse-lhe um troféu que desse acalanto ao seu ego. No caso da indígena Kokama de Santo Antônio do Içá, município do Amazonas, ocorreram estupros coletivos, uma curra costumeira, ainda que o ato dos cinco policiais homens ocorresse um de cada vez. O crime é vil, repugnante e abjeto. Atingiu a humanidade dessa mulher, sua psique e autoestima. No período de 2009 a 2019, ocorreram 569 estupros de meninas e mulheres indígenas de 5 a 19 anos no Amazonas. Em 2022, de 836 casos de estupros no Amazonas, 591 eram de mulheres indígenas. Em 2023, 30 meninas Yanomami engravidaram por estupro (ISA, 2024). Os garimpos ilegais, os conflitos fundiários, a violência institucional, o isolamento territorial e o racismo ambiental e institucional compõem a tecnologia do biopoder criado pelo grande capital para domesticar e tornar dóceis os corpos, como anuiu Foucault (1991).

As mulheres indígenas não são apenas vítimas de um racismo que as marginaliza etnicamente, mas também de um racismo institucional que as submete a uma maior precarização e vulnerabilidade de suas vidas, por ausência de políticas de enfrentamento à violência sexual. Elisiane Andrade, coordenadora da Marcha de Mulheres no Amazonas, sugere que o Estado ofereça “proteção e acesso à justiça com criação de delegacias e serviços móveis especializados, que atendam em territórios indígenas, inclusive com casa de acolhida às mulheres violentadas.” May Sateré-Mawé, ativista da Articulação das Organizações dos Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), chama atenção para o fato de que “o Ministério Público atue mais efetivamente nos casos de estupros de mulheres indígenas, que se tornam cada vez mais cruéis e sem respostas das instituições”. As ausências e negligências apontadas pelas lideranças feministas mostram claramente o racismo institucional que resulta em processos de exclusão e desumanização dessas mulheres. Uma lógica de necropolítica mais intensificada que se reflete numa combinação de racismo étnico e institucional.

Aos moldes da necropolítica, podemos dizer, com Agamben (2010), que a vida sacer (sagrada) é incluída na sociedade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável é a vida sacra. A morte da alma das mulheres indígenas faz sangrar a floresta. A Mãe-Terra chora diante do vilipêndio do corpo-território e da alma cosmológica. Mexeu com uma, mexeu com todas, fazendo estremecer a mãe da mata, dos igarapés e das cachoeiras. São vidas sagradas levadas à necropolítica por machos cretinos e cínicos. Não são doentes, são suficientemente conscientes de seus atos. A sociedade e os poderes públicos, na medida em que se calam frente a essa barbárie, reproduzem a alta cretinação e espetacularizam a violência contra a mulher no palco teatral do cinismo.

(*)Professora titular da Universidade Federal do Amazonas e doutora em Antropologia Social.

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