‘Etnocídio constitucional’, alega professora afastada de escola em RO por ‘insistir em temática indígena’

Márcia Mura é uma conhecida professora e líder indígena em Rondônia (Jacy Santos/@ondejacyviu)

Priscilla Peixoto – Da Cenarium

MANAUS – Em Rondônia, uma professora indígena foi retirada do quadro de professores da Escola Estadual Professor Francisco Desmorest Passosde, unidade de educação ribeirinha na comunidade Nazaré, distrito de Porto Velho, em Rondônia, após “insistir em inserir a temática indígena e local para todos os estudantes”. A alegação consta no relatório que pediu a remoção da doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora Márcia Mura, da etnia Mura. Nas redes sociais, Márcia aponta que a decisão representa “etnocídio constitucional”.

Na leitura do professor indígena e líder Boniwa do Alto Rio Negro, no Amazonas, Bonifácio José Boniwa que, inclusive, auxiliou na fundação de unidades de ensino fundamental e ministrou inúmeras palestras voltadas ao tema educacional em escolas no Estado, para difundir a importância da cultura indígena, o episódio vivido por Márcia se trata não só de uma questão de discriminação, mas de perseguição política.

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Márcia Nunes Maciel, conhecida como Márcia Mura, é historiadora e líder indígena com forte presença em Rondônia (Tanisson/Instagram)

“Na minha leitura, aparenta muito mais um episódio de política e politicagem endossado pela discriminação. Fico triste em ver acontecimentos como estes. Vejo mais um jogo político do que a temática ser de fato um problema”, ressalta o professor à CENARIUM, afirmando que irá estabelecer contato com as lideranças de Rondônia para saber de fato as problemáticas que rondam o local.

De acordo com informações publicadas pelo veículo de jornalismo investigativo Agência Pública, a diretora da unidade educacional Ana Laura Camacho afirmou que a decisão em remover Márcia do quadro de funcionários do local “veio de cima”.

“A escola é do governo, somos funcionários do Estado. Existe uma linha dentro da Educação que precisa ser seguida. Eu não posso fazer aquilo que eu quero, quando eu quero, da forma que eu quero, só quando eu tiver uma barraquinha de pipoca (…) a ordem para remover Márcia veio de cima”, disse a diretora em entrevista à Agência Pública.

Dificuldades no ensino

Além de mencionar a possível perseguição política, Boniwa atenta para as dificuldades encontradas pelos professores em trabalhar temáticas indígenas nas escolas do Brasil. O problema, segundo afirma, não está somente na resistência da maioria, mas até mesmo na gama de materiais didáticos voltados ao tema.

“Até encontramos pesquisas elaboradas por estudiosos e pesquisadores, mas material didático mesmo, nos Estados e municípios do País, digo que não tem”, diz o líder indígena, e completa. “Não há nada que possa orientar o professor para dar aula de matemática indígena, história e natureza. Até a própria Mura deve ter encontrado dificuldade nisso, pois encontrar material que um gestor ou secretário de educação tenha dados aos educadores, não existe”.

“Isso é ponto a ser trabalhado e assistido, mas os próprios indígenas podem fazer e creio que vai demorar ainda”, pontua.

Trecho do relatório que pediu a remoção da professora Márcia Mura (Reprodução/Agência Pública)

Relatório e método de ensino

Ainda segundo a Agência Pública, o documento de 49 páginas recebeu aval do Núcleo de Apoio à Coordenadoria Regional de Educação de Porto Velho, órgão vinculado à secretaria de educação estadual, e pontuou uma sequência de episódios relacionados à resistência da professora em aceitar processos que desconsideram a perspectiva de uma indigenista como ela.

Embora o relatório contra a educadora indígena levantasse o argumento de que ela focasse apenas no “conteúdos relacionados à questões indígenas”, o documento também apontou que Márcia ensinava assuntos inclusos na Base Nacional Comum Curricular, o texto normativo e referência obrigatória voltada às redes de ensino e suas instituições públicas e privadas, que abrange desde a educação infantil até o ensino médio, no Brasil.

Mesmo abordando em sala de aula assuntos como Feudalismo, Iluminismo, sociedade medieval e outros, o relatório afirma que a professora não fazia uso do livro didático. A educadora ressaltou as atividades interdisciplinares que realizava em sala de aula e defendeu que um método não anula o outro.

“Fiz muitas atividades transdisciplinares em sala de aula, pois sempre trabalhei partindo da perspectiva indígena, sim, dialogando a partir do local para entender o global, entendendo que um não está desligado do outro”, argumenta Márcia em entrevista à Pública.

De acordo com informações da direção da escola, a orientação é para lotar Márcia em outra unidade de Porto Velho, na zona urbana, equidistante das comunidades tradicionais e originárias.

Sindicato e perseguição

Para o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Rondônia (Sintero), Mura estaria passando por uma perseguição e, de acordo com a secretária de assuntos educacionais do sindicato, Judith Campos, um dos pontos que denotam perseguição seria a própria imagem de um indígena, desenhada na parede da escola, que foi apagado mesmo com outros espaços na parede para fazer novos desenhos.

A presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação, Lionilda Simão, também intitula o ocorrido como perseguição e declara que o ato tem se tornado frequente no âmbito educacional, em Rondônia. “Temos outros casos de pessoas que foram removidas dos seus setores por pura perseguição”, afirmou a presidente, pontuando que o sindicato solicitou, junto à secretaria de educação, uma apuração minuciosa dos casos de abusos e assédios.

Leis e Diretrizes de Base

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em dezembro de 1996, com o número 9394/96, define e regula a organização da educação no País tendo como pilar os princípios presentes na Constituição. Em 2008, a Lei 11.645 veio reafirmar o tornar “obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” em todas as unidades de ensino fundamental, médio, públicos e privados.

“Existe um entendimento muito errado de que a cultura indígena só deve estar presente em conteúdos específicos e isso não é verdade. Essa sempre foi uma questão histórica, tanto que foi preciso a Lei 11.645/2008 para reafirmar a necessidade de tornar obrigatório o estudo da história e cultura indígena de forma transversal em diferentes conteúdos e disciplinas”, explica a professora e comunicadora indígena Ingrid Sateré Mawé, dirigente da Central Sindical e Popular Conlutas.

Ainda segundo informações do sindicato, a escola está configurada como urbana e não rural, o que seria o enquadramento correto por estar instalada em uma comunidade ribeirinha, no contexto rural.

Censura

Rondônia tem sido marcada por momentos tensos no âmbito educacional desde o último ano. Além das questões indígenas, o atual governo do Estado, liderado pelo coronel Marcos Rocha (PSL), aliado de Bolsonaro, teve livros censurados em fevereiro de 2020.

À época, a Secretaria de Educação do Estado determinou a retirada de títulos das bibliotecas das escolas alegando serem inadequados para crianças e adolescentes. Autores como Mário de Andrade, Machado de Assis, e o teólogo, psicanalista e educador evangélico Rubem Alves foram considerados impróprios.

Representatividade e luta

Márcia Nunes Maciel, popularmente conhecida como Márcia Mura, é historiadora e líder indígena com forte presença em Rondônia. A professora é autora do livro “O Espaço Lembrado – Experiências de Vidas em Seringais da Amazônia”.

Dentre os vários feitos durante a trajetória, ganhou o Prêmio de Intercâmbio Cultural do Ministério da Cultura (Minc) por apresentar sua pesquisa de mestrado, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), sobre mulheres que vivenciam o espaço do seringal na Amazônia.

Nas redes sociais, a notícia foi repudiada pela maioria dos internautas. Em um post no Instagram, ela própria considerou o ato como “etnocídio constitucional” e recebeu palavras de apoio daqueles que acompanham o seu trabalho.

A professora se pronunciou sobre o assunto nas redes sociais (Reprodução/ Instagram)

Crítica do Governo Bolsonaro, Márcia também participou da caravana das Mulheres Muras da Amazônia na Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, na primeira semana de setembro, quando mais de cinco mil mulheres de 172 etnias foram até a capital federal para lutar por direitos e fazer um manifesto contra o marco temporal, que tem como foco as demarcações das terras indígenas.

A CENARIUM tentou contato com a professora Márcia Mura e com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Rondônia (Sintero), porém, até o fechamento e publicação desta matéria, não obtivemos retorno.

*As informações obtidas para a elaboração deste material foram retiradas da agência de jornalismo investigativo independente e sem fins lucrativos, Agência Pública.

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