‘Eu também tenho cara de bandido?’; recentes mortes refletem racismo estrutural no Brasil

De acordo com dados do Atlas de Violência 2021, do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), 77% dos homicídios no Brasil foram cometidos contra negros. (Arte: Guilherme Oliveira/CENARIUM)

Priscilla Peixoto — Da Revista Cenarium

MANAUS — O ano de 2022 mal começou e casos de violência impulsionados pelo racismo já repercutem em todo o País. Durval Teófilo Filho, de 38 anos, e o congolês Moïse Kabagambe, 24, tiveram suas vidas ceifadas em um breve espaço de tempo, porém, sentenciados pela mesma motivação: A falta de respeito, o preconceito e discriminação contra pessoas negras. As mortes têm sido alvos de várias manifestações nas mídias e nas redes sociais, trazendo à tona a seguinte reflexão e questionamento: “O fato de ser negro, me torna bandido?” “

Para a advogada e integrante do Movimento Negro no Amazonas Luciana Santos, além do caso de Durval, morto na última quinta-feira, 3, pelo próprio vizinho, um sargento da Marinha, que afirmou ter o confundido com um bandido, e de Moïse Kabagambe, congolês morto a pauladas no dia 31 de janeiro na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, por cobrar o pagamento dos salários atrasados no quiosque onde trabalhava como ajudante de cozinha, mostra a desumanização dos corpos negros.

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Assim como no período colonial – onde o ‘ser negro’ era visto como ‘coisa’ -, nos tempos contemporâneos, o prisma continua inserido no senso comum da sociedade e como consequência, vitimando vidas negras.

“Essa leitura é, inclusive, reforçada por pessoas que estão nos mais altos cargos da política nacional, o que acaba legitimando ações como essas porque as pessoas se sentem empoderadas a praticar o racismo. Essa semana para nós negros foi terrível, pois sabemos que nós podemos ser a próxima vítima, mesmo que inserido num cenário mais vantajoso, é a cor da tua pele que vai definir se você vai ser alvo ou não. Lembrando que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. É vergonhoso para uma pátria que diz acolher a todos e isso não verdade”, lamenta Luciana.

Durval e esposa Luziane Téofilo no dia do casamento (Reprodução/arquivo pessoal)

Alteração no indiciamento

Acolhendo um pedido do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, a justiça modificou a tipificação do crime cometido pelo sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, preso por matar o vizinho, Durval Teófilo, alegando que confundiu o homem com um bandido. O homicídio considerado culposo (quando não há intenção de matar) passou a ser doloso (quando há intenção).

O pedido do MP atendido pela juíza Ariadne Villela Lopes, da 5ª Vara Criminal, vai contra o entendimento da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG), que indiciou o crime como culposo. Vale ressaltar, no entanto, que a classificação como doloso ainda pode ser alterada. De acordo com a juíza, essa mudança pode ser feita pelo entendimento do promotor natural do caso ao oferecer a denúncia com outro viés.

Embora essa possibilidade conste no despacho, a decisão foi recebida com ‘ares de alívio’ por integrantes da Anistia Internacional. “Colocar aquela tragédia, aquela coisa horrível que aconteceu, a gente vê com certo alívio. Para nós (Anistia Internacional) é momento de dizer que a gente vê um alívio, mesmo, na decisão do Ministério Público. E eu espero que esse seja mais um passo na contribuição para justiça, mais um passo na justiça para Durval, à família de Durval e para as pessoas dele”, afirmou Jurema Werneck, diretora-executiva da organização não governamental em entrevista ao G1.

Lentas compreensões

A advogada Luciana Santos comenta sobre a mudança de entendimento quanto à tipificação do crime que tirou a vida de Durval. A profissional acredita que alteração do status de culposo para doloso também está ligado ao fato de que, aos poucos, as constantes manifestações e debates sobre o tema estão possibilitando compreensão de que crimes vitimando pessoas negras não são menos graves que outros crimes e cita a injúria racial que, segundo ela, durante muito tempo, foi usada como método de impunidade para casos que demandariam punições mais severas.

“Toda vez que acontece um crime envolvendo uma pessoa negra sempre há um jeito de diminuir a gravidade da situação e isso também está ligado à desumanização dos corpos negros. Podemos ver muito isso nas questões religiosas envolvendo umbanda e candomblé, por exemplo, é tida como brigas de vizinhos e não como intolerância e racismo religioso. Cito também a mudança de entendimento na questão da injúria racial que foi durante muito tempo utilizadas para que as pessoas não fossem processadas pela prática do racismo”, destaca.

Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, encontrado morto na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio (Reprodução/ Facebook)

Racismo e xenofobia

A integrante do Movimento Negro atenta ainda para as situações em que o racismo e xenofobia caminham juntos, tendo como exemplo mais comum os refugiados africanos. Trazendo para uma realidade mais local, Luciana cita os haitianos e os venezuelanos presentes em Manaus e fala do mercado de trabalho como exemplo.

“Pode observar aqui, no Amazonas, temos a questão dos haitianos e dos venezuelanos que vieram para cá. Por mais qualificados que eles sejam, principalmente os haitianos que são negros de pele retinta, sendo utilizados como mão de obra barata em construções. Por que essas pessoas não foram inseridas naquilo que elas se formaram e foram aptas em fazer em seus respectivos países? Há muito isso, uma reprodução daquilo que já acontece entre pessoas do nosso País”, pontua Luciana.

Alvos da necropolítica

Na análise do professor do curso Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Jeffeson William Pereira, ser negro, brasileiro ou africano é sinônimo de ser alvo da necropolítica que governa o País. Ele explica que o aumento das infrações de direitos vivenciadas pela população negra, bem como outros seguimentos populacionais a exemplo de LGBTQIAP+, mulheres e refugiados, tem encontrado motivação no neofascismo e no ultraliberalismo dos grupos políticos que hoje governam o País.

“Os mesmos que estão conduzindo o Brasil à barbárie, nos fizeram voltar para o mapa da fome e somos ridicularizados internacionalmente. Vivemos em tempos de carestia, a crise econômica somente ampliou o abismo da desigualdade, é nesse caldo de incentivo à cultura do ódio que o racismo e a xenofobia explicitaram seus atos, no Brasil nada cortês, que historicamente violenta e mata os seguimentos já citados.” afirma o professor universitário.

Ele atenta para a necessidade de uma organização coletiva para o enfrentamento do racismo, xenofobia e toda a violência em prol da cultura de paz. “É importante nos indignarmos do silêncio infame das autoridades do governo federal frente à realidade de penúria ética, social e econômica que nos encontramos. Mais que isso, precisamos nos organizar coletivamente para fazer o enfrentamento necessário nas ruas e nas redes sociais contra a exploração do trabalho. No entanto, não se deve ser pensada somente em outubro, pois o confronto entre democracia e barbárie está sendo travado diariamente. Justiça a Moïse, justiça a Durval!”, declara.

Lógica racista

Na leitura do sociólogo Luiz Antônio, o episódio que levou à morte de Durval é reflexo de uma sociedade construída em todos os âmbitos com bases e lógicas racistas. O sociólogo afirma que os avanços contra os casos de violência impulsionados pelo racismo não serão resolvidos a curto prazo. Na análise de Luiz Antônio, há a necessidade de mais inclusão da pauta nas escolas de direito e magistratura, nas faculdades de Direito e nos debates sobre assunto nos meios de comunicações para que a prática do racismo se torne cada vez mais intolerante.

“Esses casos e tantos outros são consequências de quase 350 anos de racismo explicitado por uma lógica econômica, cultural, político e social que foi o escravismo. Sempre insisto que a escravidão não foi uma prática vinda do homem branco com uma fazenda que escravizou negros, isso foi só a aparência. O que nós tivemos foi uma sociedade inteira que escravizou seres humanos negros durante todo esse período (…) uma sociedade que não via nenhum problema em explorar a força física, a alma e a própria existência de um negro. É importante que saibamos e não esqueçamos isso”, ressalta o sociólogo.

Para Luiz Antônio tanto o caso de Durval quanto o caso de  Moïse Kabagambe são retratos claros de um País em que o risco de morrer por conta da cor de pele é real.

“Para você ter uma noção, nenhum jovem negro sai de casa sem levar o documento. Quantas vezes nós já voltamos do portão porque nossa mãe nos chamava para nos lembrar de pegar, ao menos, a identidade? Tudo para não darmos um motivo a mais para não sermos vítimas da violência. Enquanto isso, jovens brancos nem aprenderam isso porque não havia necessidade, diferente da condição do negro, que está envolto pelas chances de uma realidade violenta”, diz o sociólogo que completa.

“Eles associam nossa imagem à figura de um bandido porque essa foi a imagem construída desde sempre, negro é feio, negro é pobre, negro é perigoso, negro é bandido. É muito recente (início anos 1990) essa autoestima negra. Entre nós mesmos há resistências ao carinha ou a mina ‘mal vestida’ que traz no cerne não a vestimenta, mas a cor’, comenta.

77% dos homicídios no Brasil foram cometidos contra negros (Reprodução/Internet)

Dados recentes

De acordo com dados do Atlas de Violência 2021, do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), 77% dos homicídios no Brasil foram cometidos contra negros. O dado corrobora com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2020, que aponta que o desemprego entre negros é 71% maior do que entre brancos.

Vulneráveis e sem trabalho, a fatia de 54% da população brasileira se vê refém da desigualdade e do enfraquecimento de políticas públicas voltadas à causa negra. Uma pesquisa intitulada “Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial”, do Instituto Sou da Paz, revela que, no Nordeste do Brasil, a morte de negros por arma de fogo chegou a ser quase quatro vezes maior, se comparado as outras regiões do País.

O estudo foi realizado entre os anos de 2012 e 2019, tendo como base os dados contidos no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

Outro ponto preocupante do levantamento é a taxa de mortalidade entre as crianças e adolescentes negros que chega ao percentual de 3,6 a mais do que as crianças e adolescentes não negras. No caso dos jovens negros de até 14 anos, a taxa de mortalidade por disparos de arma de fogo alcança 61% quando as de não negros é de 31%.

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