Expulsão de cidadãos estrangeiros em território português
Por: Cláudia Monteiro de Araújo*
19 de novembro de 2025A deportação em massa de estrangeiros, um fenômeno com ressonâncias históricas e contornos contemporâneos, emerge como uma das questões mais prementes no cenário global atual. Longe de se restringir a meros procedimentos burocráticos, a expulsão coletiva de indivíduos de um território levanta dilemas éticos, jurídicos e humanitários de grande envergadura, com profundas repercussões na vida de milhares e um visível atrito com os princípios do direito internacional. Este artigo se propõe a desvendar as camadas de complexidade que envolvem a deportação em massa, focando especificamente na realidade portuguesa.
Será abordado o percurso histórico da imigração, as consequências drásticas que tais políticas impõem a quem foge de conflitos ou privações econômicas severas, e, de forma crítica, a postura de Portugal frente às normas internacionais e às suas próprias legislações. A análise da deportação não é apenas um exercício acadêmico; é um chamado à reflexão sobre a dignidade humana e o papel das nações na construção de um mundo mais justo e acolhedor.
2. O Contexto Histórico da Imigração: Fluxos e Refluxos
A história da humanidade é intrinsecamente ligada à história da migração. Desde os primórdios, povos se deslocaram em busca de melhores condições de vida, segurança, ou simplesmente por curiosidade. As grandes navegações, as guerras mundiais, o colonialismo e a descolonização são marcos que reconfiguraram mapas e populações, estabelecendo novos fluxos migratórios. Portugal, enquanto nação com um passado imperial e colonialista, possui uma relação particularmente complexa com a imigração. Por séculos, foi um ponto de partida para a diáspora portuguesa, mas também um destino para populações de suas ex-colônias e, mais recentemente, de outras partes do mundo em busca de oportunidades.
No pós-guerra, com o advento da globalização e a intensificação das desigualdades econômicas e sociais, a imigração ganhou novos contornos. Países europeus, incluindo Portugal, experimentaram ondas de imigração para suprir a demanda por mão de obra. Essa necessidade, no entanto, frequentemente conviveu com políticas restritivas e uma retórica xenófoba, criando um paradoxo entre a dependência da força de trabalho imigrante e a dificuldade em aceitá-la plenamente. Bauman (2001) explorou a fragilidade das identidades e das fronteiras na era contemporânea, argumentando que a mobilidade, embora essencial para o capitalismo global, gera ansiedade e incerteza, muitas vezes canalizadas contra os “estranhos”, os imigrantes e refugiados. Essa tensão entre a fluidez do capital e a rigidez das fronteiras é um pano de fundo crucial para entender as políticas de deportação em massa (BAUMAN, 2017).
3. A Fuga da Adversidade: Deportação e Vulnerabilidade Extrema
Para muitos, a decisão de deixar o país de origem não é uma escolha, mas uma necessidade imposta por circunstâncias extremas. Conflitos armados, perseguição política, desastres ambientais e crises econômicas severas empurram milhões de pessoas para o êxodo. Esses indivíduos, frequentemente denominados migrantes forçados ou refugiados, carregam consigo um fardo de experiências traumáticas e a esperança tênue de encontrar segurança e um futuro digno em outro lugar.
Quando tais pessoas, que já se encontram em situação de vulnerabilidade aguda, são alvo de deportações em massa, as consequências são catastróficas. A reinserção em um ambiente que foi a fonte de sua fuga, seja um país em guerra, com grave crise econômica ou onde a perseguição persiste, não apenas ignora a sua vulnerabilidade, mas pode colocar suas vidas em risco iminente. A deportação, nesse contexto, representa uma revitimização, perpetuando um ciclo de instabilidade e desesperança.É fundamental reconhecer que a dignidade humana não se apaga ao cruzar uma fronteira. Pessoas em busca de refúgio ou melhores condições de vida merecem proteção e consideração, conforme preconizado por instrumentos internacionais de direitos humanos. A deportação sumária ou em larga escala, sem a devida análise individual de cada caso e sem a garantia de um processo justo, desumaniza e anula a narrativa de quem já foi tão duramente impactado pela adversidade.
4. Portugal: Entre a Legislação e a Realidade das Deportações
Portugal, como signatário de importantes tratados internacionais de direitos humanos e do direito dos refugiados, como a Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tem a obrigação de respeitar e proteger os direitos dos migrantes e solicitantes de asilo. A legislação portuguesa, em teoria, alinha-se a esses princípios, estabelecendo procedimentos para o reconhecimento do estatuto de refugiado e de proteção subsidiária, e garantindo o direito a um processo justo em casos de expulsão (ACNUR, 1951).
No entanto, a prática nem sempre reflete a letra da lei. Relatórios de organizações de direitos humanos e artigos de investigação têm apontado para uma postura cada vez mais rigorosa por parte das autoridades portuguesas em relação à imigração irregular, com um aumento das detenções para fins de expulsão e das deportações, por vezes sem a devida consideração das circunstâncias individuais dos envolvidos. Critica-se a falta de acesso efetivo a aconselhamento jurídico para os detidos, a morosidade e a opacidade dos processos, e a realização de deportações coletivas que violam o princípio da não-devolução (non-refoulement), fundamental no direito internacional dos refugiados. Este princípio proíbe a devolução de um indivíduo a um território onde sua vida ou liberdade estariam ameaçadas (ZANETTI, 2024).
A pressão política interna, aliada a diretrizes europeias que buscam “conter” os fluxos migratórios, pode levar a uma interpretação e aplicação mais restritiva da legislação. Essa rigidez contraria não apenas as obrigações internacionais de Portugal, mas também a sua própria história como nação de emigrantes, que por séculos dependeu da acolhida de outros países. A tensão entre a segurança das fronteiras e a proteção dos direitos humanos é um desafio constante, mas a prioridade deve recair sempre sobre a dignidade da pessoa humana e o respeito às normas internacionais que Portugal se comprometeu a seguir (FERMANIAN, 2025).
5. Considerações Finais
A deportação em massa transcende a esfera jurídica para se tornar uma questão de profunda moralidade e humanidade. Em um mundo onde as fronteiras se tornam cada vez mais permeáveis para o capital e as informações, mas intransponíveis para milhões de seres humanos em busca de refúgio e dignidade, a expulsão coletiva representa um fracasso civilizacional.
Portugal, como nação democrática e signatária de convenções internacionais de direitos humanos, possui a responsabilidade de revisar suas práticas e garantir que as políticas migratórias estejam em consonância com seus compromissos. A construção de uma sociedade mais justa e inclusiva exige que as vidas dos mais vulneráveis sejam protegidas, e que o direito à busca por segurança e dignidade seja respeitado, independentemente da origem ou do status legal. A verdadeira grandeza de uma nação reside não na rigidez de suas fronteiras, mas na amplitude de sua compaixão e na solidez de seu compromisso com os direitos humanos.