Fala, Calabresa

Na última década do século 20, havia muitas quadrilhas que se incumbiam no Norte do País de traficar mulheres para exploração sexual e submissão de sua condição humana à escravidão.

O recorte histórico é compatível com a denominação “quadrilha” porque o legislador ainda não havia criminalizado as organizações criminosas.

Na época, ainda eram modestos os debates sobre as teorias tradicionais relacionadas às funções dos direitos fundamentais, posto que não ofereciam parâmetros suficientes para a promoção da emancipação de minorias e suas interseccionalidades: mulheres; mulheres pretas; mulheres indígenas; homossexuais. Ora, minorias dentro de minorias sofrem duas, três, quatro vezes mais.

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Mulheres indígenas, invisibilizadas por serem mulheres, por serem indígenas, por serem indígenas da Amazônia brasileira, eram traficadas como se bichos fossem.

Muitas que viviam em situação de autoisolamento em suas comunidades e aldeamentos desconheciam completamente as questões sobre a necessidade de pertencimento, de concretização de seus direitos constitucionais pré-existentes e direitos humanos universais.

Quando agências ou órgãos pensavam sobre tais grupos minoritários, muitos o faziam a partir de uma visão zoológica e de proteção equivocada.

Todas essas vulnerabilidades favoreciam as quadrilhas que se organizavam para escravizar e traficar mulheres. Do Amazonas, passando por Roraima, indo para as Guianas, e daí para outros países inclusive em outros continentes.

Em certa ocasião, após uma grande operação destinada a desarticular quadrilhas com esse viés, um dos suspeitos que estava em situação de prisão cautelar relatava sua própria vulnerabilidade.

Preto, homossexual, alegava tortura após chegada em determinada Casa Penal.
Dizia ter recebido o apelido de ‘Calabresa’. E lá sofria com sacos, telefones e até pratos, técnicas de torturadores para extrair informações que eles julgam importantes para suas vidas milicianas.

Não bastasse isso, alegava sofrer com sessões terríveis de estupros coletivos, por ser homossexual.
Em sua primeira apresentação ao juiz do caso, foi ouvido em seus relatos de dor e imediatamente retirado daquele ambiente indigno e hostil. Mas nada do que se fizesse apagaria as lembranças de tortura e dor.

Ficou marcado o dia em que de joelhos e aos prantos, pedia misericórdia ao seu juiz, pois não aguentava mais ser torturado ao som de “fala, Calabresa”.

Liberado daquele encarceramento infernal, morreu um ano depois, vítima de infecção causada pelo HIV.

De um lado, mulheres indígenas traficadas para serem escravizadas, exploradas sexualmente; minorias dentro de minorias vivendo tragédias. De outro, a prisão que mata, não corrige, não ressocializa, não recupera e, portanto, não pune com deveria punir. Como comparar dramas tão profundos?

É importante confrontarmos a realidade do processo de criminalização no País. Não podemos negar o quanto ele serve para mostrar o viés legitimador da seletividade do processo penal.

Dados da Pesquisa Nacional sobre o tráfico de mulheres, Crianças e Adolescentes (Pestraf) contabilizam 110 rotas nacionais e 131 rotas internacionais, sendo 32 dessas para a Espanha. Muitas mulheres brasileiras continuam sendo escravizadas e traficadas de forma trágica, sem jamais conseguirem retornar para suas famílias.

Afinal, há funcionalidade no sistema penal brasileiro?
A resposta fica para o próximo texto.

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(*)Juíza federal, professora de Direito e Doutora em Biotecnologia

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