Famílias dividem espaço com lixo e esgoto na maior metrópole da Amazônia


Por: Ana Pastana e Alinne Bindá

30 de julho de 2025
Famílias dividem espaço com lixo e esgoto na maior metrópole da Amazônia
Em meio à cheia, criança no bairro Educandos, em Manaus, divide o espaço com lixo e animais dentro da própria casa (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

MANAUS (AM) – A cheia dos rios que banham o Amazonas, entre janeiro e julho, escancara a realidade de famílias ribeirinhas que convivem com água contaminada, lixo acumulado e perda de bens materiais. É o caso dos moradores de um dos bairros mais antigos de Manaus, o Educandos, na Zona Sul da cidade, que vivem em casas de palafitas (construções elevadas sobre estacas de madeira, comuns em áreas alagadiças) atingidas pela elevação do Rio Negro.

A situação de famílias que vivem nessas áreas, durante a enchente no Estado, revela a violação de direitos garantidos pela Constituição Federal. O Artigo 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado, enquanto o artigo 6º assegura o acesso à moradia, saúde e saneamento básico.

Lixo se acumula em área alagada no bairro Educandos, onde moradores convivem com água contaminada e riscos à saúde (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

O bairro, que fica localizado na orla da cidade de Manaus, divide espaço entre as águas do Rio Negro e a estrutura das casas construídas ao longo dos anos. Com a cheia, as famílias afetadas recorrem a soluções improvisadas para sobreviver em meio ao evento climático: isopor vira geladeira e a casa de vizinhos ou parentes se transforma em abrigo. É o caso do feirante Vanderlan Rodrigues, de 39 anos, e da esposa dele, a dona de casa Sulimar Viana, de 31, que trabalham com a venda de peixes e perderam eletrodomésticos ao terem a residência invadida pela água.

“Isso aqui foi tudo o que eu perdi, perdi a minha geladeira, perdi essa máquina [de lavar] porque eu não estava aqui quando encheu, eu fui embora. Está aqui a geladeira, a geladeira agora é este isopor. Quando enche aqui é assim, a gente perde muita coisa. É uma calamidade a gente ter que viver nessa enchente”, lamenta Vanderlan Rodrigues.

O casal Vanderlan Rodrigues e Sulimar Viana, moradores do bairro Educandos, em Manaus (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

O feirante relata a dificuldade que os moradores da comunidade precisam enfrentar em tempo de cheia. De acordo com ele, animais mortos e até fezes são encontrados em meio ao lixo acumulado no local.

“Quando enche, traz todo o lixo e acumula tudo aqui, e quando seca, fica tudo acumulado aqui embaixo [da casa] e vira moradia de animal. É cachorro morto, gato morto, fezes humanas, essa água é muito poluída. Quando é época de cheia, ela traz muita doença e, muitas vezes, a gente tem que pisar nessa água. Às vezes, cai até criança aí dentro [do rio]”, ressalta o morador do Educandos.

Vanderlan Rodrigues, na casa de palafita onde mora com a família, que fica localizada sobre o Rio Negro (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

Sulimar Viana conta que a família permanece no local por falta de alternativas e sonha com a oportunidade de uma vida mais digna. “A gente vive em situação de vulnerabilidade. Se tivéssemos uma chance de sair daqui, sairíamos, sim. Estamos assim porque não temos condições de pagar aluguel”, conta.

Essa é também a realidade da dona de casa Jacilene Silva, de 22 anos, moradora da localidade e mãe de duas crianças. Há três anos vivendo no local, ela relata que precisa deixar a casa onde mora com o marido e os filhos sempre que os rios sobem. Com a residência atualmente submersa, Jacilene se mudou para um quarto alugado com a filha mais nova, enquanto o filho mais velho ficou sob os cuidados da avó paterna. Segundo ela, o espaço é pequeno e insuficiente para acomodar a família.

Toda vez que alaga é assim, e eu tenho que sair de casa porque enche até no teto. Como eu não tenho condições de alugar um quarto, a minha sogra me ajuda: ela paga um mês e, no outro mês, eu pago, fica metade, metade. Ele [o filho] mora aqui com a avó dele porque o quarto que eu aluguei é pequeno, não dá para ele ir“, relata.

A dona de casa Jacilene Silva com a filha mais nova (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

Jacilene, que também perdeu eletrodomésticos e móveis, aguarda a diminuição da água para tentar reconstruir a vida da família. “Toda vez eu perco tudo. Já perdi duas camas e minha geladeira, porque a casa alagou. Estou esperando a água baixar para poder voltar, mas vou ter que comprar tudo de novo: tinta, móveis, tudo. E ainda tem que lavar tudo direitinho, por causa das crianças”, desabafa.

Cheia no Amazonas

A cheia no Estado já impacta mais de meio milhão de pessoas até julho deste ano, de acordo com o Boletim Cheia, divulgado pelo Governo do Amazonas nesta quarta-feira, 30. Ao todo, 43 municípios estão em estado de emergência; 12 estão em alerta; um em atenção e seis seguem em normalidade.

De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (SES-AM), 72 kits de medicamentos foram enviados para os municípios de Apuí, Boca do Acre, Manicoré, Humaitá, Ipixuna, Guajará e Novo Aripuanã, beneficiando mais de 35 mil moradores dessas cidades.

Área de moradias de palafitas, no bairro do Educandos, na Zona Sul de Manaus (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
Riscos à saúde

O médico infectologista Nelson Barbosa explica que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a água contaminada pode conter pequenas quantidades de microplásticos. Durante o período das cheias, porém, a ingestão dessa água representa um risco ainda maior à saúde, especialmente em áreas sem acesso a saneamento básico.

“Nas áreas periféricas alagadiças, o contato com essa água misturada a lixo, que contém microplásticos, pode causar diversas doenças à população, incluindo câncer, problemas intestinais, alterações hormonais, doenças cardiovasculares e degenerativas. Além disso, essa água contaminada pode transmitir doenças como hepatite A, leptospirose e outras infecções”, alerta o especialista.

Dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicam que, durante as cheias na Amazônia, o índice de casos de doenças transmitidas pela água pode aumentar em até 40%, especialmente em comunidades ribeirinhas que têm acesso limitado a saneamento básico.

Direito à dignidade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aponta que “toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários“.

Trecho do documento da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Reprodução/Unicef)
Leia mais: Cheia afeta meio milhão de pessoas em 58 municípios do interior do AM
Editado por Adrisa De Góes

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