Fechamento de postos da Funai expõe indígenas de recente contato a riscos de invasão e violência
Por: Fred Santana
25 de setembro de 2025
MANAUS (AM) – Documentos elaborados pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus (FPE-MadPur), vinculada à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), confirmam um cenário de descaso e vulnerabilidade envolvendo o povo Pirahã, na região do Rio Madeira, além de apontarem crimes como a exploração ilegal de madeira no sul do Amazonas. Os ofícios, obtidos com exclusividade pela CENARIUM, revelam ainda que lideranças indígenas ligadas ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) estariam pressionando servidores da Funai responsáveis pela fiscalização desses crimes.
As informações registradas em ofícios encaminhados a diferentes órgãos, entre eles o Ministério Público Federal (MPF), reforçam a denúncia relatada à reportagem por uma profissional que atuava na defesa dos direitos dos Pirahã. Segundo ela, programas sociais destinados aos indígenas não estariam sendo acessados pela comunidade, e os cartões de benefícios ficariam sob controle de terceiros. Os documentos também mencionam um “colapso” após o fechamento de bases da Funai na região em junho de 2024, sob o Governo Lula.

Para sobreviver, os Pirahã têm recorrido à coleta de alimentos fora de seu território, situação que tem gerado tensão com comunidades vizinhas e já resultou em episódios de violência. O caso mais recente foi registrado em setembro deste ano, nas imediações do Rio Maici, em Humaitá (AM), quando um trabalhador foi morto e outro ficou ferido.
O primeiro relatório, intitulado “Relatório PCA’s Madeira”, cobre o período de junho a agosto de 2024 e descreve o agravamento da situação após o fechamento dos Postos de Controle de Acesso (PCAs) nas Terras Indígenas Pirahã e Juma, por decisão da Coordenação Regional Madeira da Funai. A justificativa apresentada foi a falta de recursos. No entanto, técnicos da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) registraram que havia orçamento disponível, mas sem aplicação adequada.
O documento também cita a precariedade das instalações, a ausência de políticas de saúde e denúncias de extração ilegal de madeira dentro do território Pirahã. Segundo a equipe, o fechamento dos PCAs deixou os indígenas expostos a invasões, fome e risco de massacres. O relatório ainda registrou avistamentos de indígenas isolados na região do Rio Maici.
“A equipe avalia que, para efetivar dados mais concretos, faz-se necessário realizar expedições ao longo do território para averiguação dos relatos, considerando, sobretudo, a proximidade do local de possível avistamento com propriedades particulares, bem como demais territórios indígenas, como os Jiahui e os Parintintin. O local também é de uso contínuo dos Pirahã, o que torna a leitura de vestígios de isolados difícil de ser realizada”, diz um trecho do documento.
O segundo relatório, encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) entre julho e setembro de 2024, apresenta as medidas emergenciais adotadas após determinação da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) para restabelecer as bases de proteção. Entre as ações, estão a instalação de roças comunitárias para garantir segurança alimentar e iniciativas na área da saúde. Ainda assim, a assistência permaneceu insuficiente, marcada pela ausência de médicos e pelas dificuldades na remoção de indígenas em situação de risco.
Extração de madeira
Outro documento obtido pela CENARIUM é um ofício da Funai, datado de 22 de julho de 2024, que evidencia a gravidade da situação enfrentada pelas equipes de fiscalização na Terra Indígena Pirahã. O documento registra denúncias de extração ilegal de madeira e garimpo, além de relatar intimidações sofridas por servidores durante operações de monitoramento.

Segundo o ofício 252/2024/CFPE-MadPur, de 17 de julho de 2024, a equipe do Posto de Controle e Acompanhamento (PCA) Alto Maici foi comunicada sobre a chegada de integrantes da Coordenação Regional (CR) Madeira da Funai, com o objetivo de realizar uma operação de fiscalização no território Pirahã, com apoio logístico do posto. Durante a ação, registros fotográficos confirmaram a presença de extração ilegal de madeira, prática já registrada em processos anteriores da Funai.
Pressão sobre servidores
O documento registra que servidores foram abordados em quatro pontos distintos da Terra Indígena Pirahã. Um cacique, cujo nome não foi citado, questionou a ausência de aviso prévio sobre a operação e exigiu justificativas. Os fiscais explicaram que a ação se baseava em denúncias encaminhadas por associações indígenas à sede da Funai em Brasília e enfatizaram que operações de monitoramento possuem caráter sigiloso.

Apesar de autorizados a continuar a fiscalização, os agentes foram “orientados” a não realizar registros durante a ação. Eles relataram que a extração de madeira e o garimpo avançam “a todo vapor” na região, recomendando a realização de uma nova operação, mais robusta e integrada, com poder de autuação e reforço de segurança. O ofício alerta que a ausência de coordenação institucional coloca em risco a integridade das equipes, expondo os servidores a ameaças diretas.
O documento aponta que a pressão representou uma intimidação direta, criando um ambiente de insegurança para os fiscais. Segundo o relatório, tais pressões também teriam sido exercidas por lideranças indígenas vinculadas ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que demonstraram insatisfação com a condução das operações, sobretudo por exigirem aviso prévio. Os servidores reforçaram que as ações sigilosas são essenciais para combater crimes como a extração ilegal de madeira e o garimpo.
Além disso, as equipes de proteção registraram novas denúncias de exploração de madeira e relataram que, diante da fome, indígenas realizam furtos em comunidades vizinhas, elevando a tensão local. O relatório ainda descreve ameaças sofridas por servidores da Funai e parceiros, que passaram a ser alvos de pressões de madeireiros e lideranças da região. Segundo a denunciante ouvida pela reportagem, relatórios e pedidos de apoio elaborados pela FPE teriam sido negligenciados, enquanto processos relacionados à proteção da comunidade permanecem parados no Ministério Público Federal.

Descumprimento de determinação do STF
Os documentos também mencionam o descumprimento da ADPF 709, decisão do Supremo Tribunal Federal que obrigou a União a adotar medidas de proteção sanitária e territorial durante a pandemia de COVID-19. A determinação previa barreiras sanitárias, retirada de invasores e garantia de acesso ao Sistema Único de Saúde para todos os povos indígenas, medidas que não foram mantidas após o fechamento dos PCAs.
Como consequência, o povo Pirahã, considerado de recente contato, continua vivendo em situação de risco extremo. A combinação de invasões, fome, ausência de políticas públicas efetivas e pressão de atores externos agrava a vulnerabilidade de uma comunidade que, mesmo após mais de dois séculos de contato, mantém práticas tradicionais e luta para sobreviver em seu território.
A reportagem optou por não publicar, na íntegra, os documentos obtidos, por conter dados sensíveis de servidores que atuaram na região.
Posicionamento dos órgãos
Em nota à CENARIUM, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou não ter conhecimento das denúncias de supostas ameaças a servidores da Funai. A pasta informou que acompanha a situação do povo Pirahã e coordena a sala de situação nacional da ADPF 709. Sobre os Postos de Controle de Acesso (PCAs), o MPI explicou que foram medidas instituídas durante a pandemia, para proteger direitos indígenas, e que atualmente a Terra Indígena Pirahã conta com uma Base de Proteção Etnoambiental na região Baixo Maici, garantindo a continuidade da proteção, mesmo após a descontinuidade dos PCAs. A respeito de conflitos, o MPI informou acompanhar o contexto por meio da Coordenação Geral de Povos Indígenas de Recente Contato, em conjunto com o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Indígenas (Demed).
A Funai também se manifestou, afirmando que o incidente ocorrido em 17 de julho, quando um homem foi morto supostamente por indígenas Pirahã, está sendo investigado. A autarquia disse que está tomando todas as providências para levantar informações junto à comunidade e reforçar a segurança da área. Sobre o fechamento dos PCAs, a Funai justificou que a medida visou “construir maior especificidade na proteção etnoambiental e nos direitos socioculturais dos Pirahã, por se tratar de povo de recente contato”, além de adequar o acesso a benefícios sociais.
A CENARIUM procurou o Ministério Público Federal (MPF) para esclarecimentos sobre as denúncias e os relatórios oficiais referentes à situação do povo Pirahã, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.