Festival de Parintins: lucro com cultura indígena e exclusão social?


Por: Inory Kanamari

23 de novembro de 2025

Ka tücüna naina. Saudações, leitor(a). Como advogada indígena com experiência, e uma mulher que carrega com orgulho a luta de meu povo, preciso ser clara: o Festival de Parintins não representa os povos indígenas. Pelo contrário, ele simboliza a exclusão, a apropriação indevida de nossa cultura e a invisibilidade de nossas vozes. Em um evento que deveria, ao menos, ser um reflexo do respeito e da celebração de nossas raízes, o que vemos é uma exploração da nossa história e das nossas tradições para o lucro de empresários não indígenas, enquanto os verdadeiros donos dessa cultura são deixados à margem, sem qualquer participação efetiva ou benefício.

O Festival de Parintins, realizado anualmente, tornou-se uma poderosa máquina de lucro para uma elite empresarial composta majoritariamente por pessoas brancas e não indígenas. E uma das estratégias principais do festival é dar visibilidade aos não indígenas, distorcendo a figura do indígena para agradar ao olhar do público, especialmente por meio da criação da personagem fictícia cunhã-poranga, uma “indígena guerreira”. Essa personagem não só é uma representação falsa da cultura indígena, mas também se torna um veículo para a sensualização do corpo da mulher indígena, passando a ideia de que os corpos das mulheres indígenas são objetos de prazer para uma sociedade doente. Cunhã-poranga serve como uma caricatura sexualizada, alimentando estereótipos nocivos e perigosos sobre a mulher indígena, transformando-a em um objeto de consumo e desejo.

Fachada do Bumbódromo, em Parintins (AM) (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Esse tipo de representação não apenas distorce nossa identidade, mas contribui para a objetificação do corpo das mulheres indígenas, perpetuando a ideia de que estamos à disposição para o prazer e a exploração da sociedade dominante. Essa sexualização é mais do que um estereótipo; ela fomenta a visão de que as mulheres indígenas podem ser tocadas, abusadas e tratadas como mercadoria. Um festival que deveria celebrar nossa cultura e fortalecer nossa identidade se torna um terreno fértil para a exploração e a marginalização de nossas mulheres, criando um ambiente onde a prostituição infantil e a violência contra as mulheres são normalizadas, incentivadas pela falsa ideia de que nossos corpos estão à disposição.

O Festival de Parintins, embora envolto em uma fachada de celebração cultural, na realidade busca apenas enriquecer uma minoria. Embora as manifestações culturais dos povos originários sejam belamente expostas nas apresentações, a participação real dos indígenas é completamente ignorada. Somos invisibilizados em nossa própria terra, enquanto nossa cultura e nossos rituais sagrados são recriados e distorcidos por aqueles que não pertencem aos nossos povos. O palco desse evento se tornou um teatro de uma cultura que nos pertence, mas que nos é roubada, sendo interpretada por aqueles que nunca viveram nossa realidade.

A ideia de que o festival “celebra” a cultura indígena é uma falácia. Ele não apenas ignora os verdadeiros representantes dessa cultura, como também perpetua a falsa ideia de que estamos aceitando ser usados como objetos de entretenimento. Não há crítica da sociedade sobre esse fenômeno, e a presença de indígenas nesses espaços não é tratada com respeito, mas com um silêncio cúmplice, como se nossa presença não fosse necessária para a construção de uma narrativa verdadeira. Não há verdadeira inclusão, mas uma inclusão forçada, uma aparência que visa aplacar as consciências enquanto, na prática, nada muda.

O Festival de Parintins se repete anualmente, consolidando-se como um evento bilionário. Mas o que se observa é que a riqueza gerada pelos empresários, muitos deles oriundos de famílias brancas e ricas, jamais retorna para as comunidades indígenas. Nossos territórios, nossas histórias e nossa cultura são vendidos a preço de ouro, mas nenhuma parte desse lucro é revertida para os povos indígenas, que continuam à margem, sobrevivendo em condições precárias. Esse evento bilionário, que é visto como um marco de celebração cultural, reflete a exclusão e a marginalização de nossa gente, sem qualquer questionamento por parte da população local. A falta de crítica e a normalização dessa realidade são sintomas claros do racismo estrutural e da xenofobia que permeiam a sociedade amazonense.

A desvalorização dos povos indígenas no Amazonas é um problema grave, mas tratado com indiferença por muitos. O festival apenas reforça a política silenciosa de exclusão, onde as histórias e as tradições dos povos originários são desrespeitadas e dilaceradas, enquanto os lucros vão para as mãos de poucos. A verdade é que os organizadores do festival não têm interesse em preservar ou respeitar a cultura indígena, mas apenas em gerar lucro e perpetuar a ideia de que nossa presença e nossa história são dispensáveis.

Nós, indígenas, não morremos apenas quando somos assassinados ou vítimas de violência física. Morremos todos os dias quando nossos territórios são roubados, quando nossas histórias são distorcidas e nossas culturas são apropriadas sem nossa permissão. O Festival de Parintins é um reflexo dessa usurpação. Ele é a materialização de um furto cultural, de uma apropriação indevida do que é nosso, sem qualquer respeito por nossas tradições ou participação no processo.

É necessário questionar publicamente: qual povo deu permissão para que seus rituais sagrados fossem transformados em espetáculo? Onde está a consulta, o consentimento, a participação ativa dos indígenas nesse processo? Não podemos permitir que nossa cultura continue sendo retratada sem nossa voz, sem nosso poder de decisão. Este evento não beneficia as comunidades indígenas, mas enriquece os empresários que fazem parte de uma elite branca e opressora.

Em minha trajetória como advogada, vejo que a luta por justiça para os povos indígenas no Amazonas é uma luta diária contra o racismo, a exploração e a exclusão. O Festival de Parintins não é uma celebração genuína da nossa cultura. Ele é uma indústria que lucra com nossas tradições, sem nos dar o devido reconhecimento, sem promover nossa verdadeira inclusão e sem garantir que os benefícios alcancem quem realmente precisa. O evento não representa meu povo Kanamari, assim como não representa nenhum outro povo indígena da região. Sua única finalidade é gerar lucro para quem já detém o poder e a riqueza neste estado, perpetuando um ciclo cruel de exclusão.

Chegou o momento de nos questionarmos, de questionar os organizadores e o governo: por que nossa cultura é usada para enriquecer outros, enquanto nós, indígenas, continuamos à margem, sendo representados por aqueles que, em muitos casos, nos desprezam? A verdadeira inclusão não se faz com a venda de nossa identidade, mas com a garantia de nossos direitos, de nossa voz e de nossa participação. O Festival de Parintins, infelizmente, não é e nunca será um espaço de verdade para os povos indígenas do Amazonas.

Bapo ikoni. Até a próxima pauta.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

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