Fim do sigilo aos escravagistas

Ao longo da semana, ouvi e li relatos de pessoas comovidas com a história da negra Madalena Santiago da Silva, 62 anos, dos quais 54 na casa da família Seixas Leal, em Lauro de Freitas (BA), em condições análogas a de escrava. Foi mais de meio século, período em que não teve infância nem juventude como empregada doméstica, desde o oitavo ano de vida, submetida a maus-tratos e castigos, como os impostos a seus ancestrais no cativeiro.

Madalena foi resgatada por auditores-fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), mas só agora o caso veio à tona na mídia. A 2ª Vara do Trabalho de Salvador acolheu o pedido da procuradora Lys Sobral, coordenadora nacional de combate ao trabalho escravo, e bloqueou R$ 1 milhão do patrimônio da família Seixas Leal. Se o valor fosse multiplicado pelo número de anos de cativeiro, ainda assim não seria suficiente, considerando-se todas as perdas sofridas por Madalena.

Daqui a quatro dias, a Lei Áurea, proclamada pela princesa Isabel, por pressão da “elite” econômica da época do Império, completará 134 anos. Desde 14 de maio, dia seguinte da assinatura do marco legal do fim da escravidão, muito pouco ou quase nada mudou no Brasil em relação aos negros— e em muitas outras nações consideradas desenvolvidas.

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As vitórias conquistadas pelo povo negro foram pífias neste País, onde a democracia racial é uma farsa. A escravidão de pessoas foi a base (e ainda é um dos pilares) da formação de grandes fortunas de muitos que estão no topo da pirâmide socioeconômica, entre os que detêm 10% de toda a riqueza do País.

Hoje, os negros são a maioria dos brasileiros submetida à condição de escravos. Eles representam mais de 80% dos trabalhadores libertados nas operações contra essa infâmia persistente no País, a partir de 1995, quando foi criado o Grupo de Fiscalização Móvel do Trabalho. Período em que cerca de 60 mil pessoas foram retiradas das senzalas e dos pelourinhos do século 21. Este índice está associado à enorme parcela de pretos e pardos que vivem na miséria —75% dos 19 milhões abaixo da linha da pobreza. O recorte raça/cor revela que as imagens da realidade anterior ao 13 de maio de 1888 persistem na contemporaneidade.

Fragilizados pela fome e pela miséria, os trabalhadores — não só os negros, mas também indígenas e imigrantes que buscam refúgio no Brasil — são atraídos por falsas promessas de bons salários feitas pelos “gatos”, aliciadores com funções idênticas as dos então “capitães do mato”, tanto no meio rural quanto nos centros urbanos. As vítimas aceitam a oferta e são deslocadas para áreas distantes da cidade de origem, onde têm a liberdade cerceada, são submetidos a jornadas exaustivas, à violência dos gatos, a ambientes insalubres e à servidão por dívida. Ou seja, confinados ao trabalho escravo, como definido pelo artigo 149 do Código Penal.

Nos primeiros três meses deste ano, pelo menos 400 trabalhadores foram libertados nas operações dos auditores-fiscais. Em 2021, no auge da pandemia de Covid-19, 1.937 pessoas foram salvas pela fiscalização. O Código Penal prevê penas de cinco a 10 anos de prisão, multas e expropriação do imóvel.

Faltam políticas públicas mais adequadas e punições mais rigorosas contra a reprodução da hedionda escravidão, a começar pelo fim do sigilo da Lista Suja, para que sociedade conheça, por meio dos veículos de comunicação, o nome, as imagens e os produtos dos escravagistas da atualidade. Impõe-se uma revisão profunda das ações do Estado, a fim de que a Lei Áurea deixe de ser ficção histórica e se torne marco legal concreto no País. O primeiro passo é combater todas as formas de racismo.

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(*)Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas há 62 anos em Brasília, jornalista, há 41 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e, hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.

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