‘First Nations of Canada’: A opressão fria de um povo


Por: André Lopes

17 de fevereiro de 2025

No ano de 2019, eu estava em Vitória, a maior cidade da Ilha de Vancouver, no Pacífico norte do Canadá. A província da Colúmbia Britânica possui uma certa fama de ser liberal e democrática, assim como, atualmente, ter uma política de valorização das tradições indígenas, chamados oficialmente pelo governo, e respeitosamente pela sociedade, de “First Nations”. A linda ilha, repleta de colinas arborizadas, riachos cristalinos, praias desertas e vida selvagem, de fato, parece um vórtice temporal que leva qualquer pessoa a um passado distante, quando os indígenas caçavam e viviam de sua terra, longe e protegidos dos conquistadores ocidentais. Por tudo isso, foi uma desagradável surpresa quando descobri a verdadeira realidade dos indígenas “canadenses”…

Rio Kootenay localizado no Planalto Noroeste, ao sudeste da Colúmbia Britânica, Canadá (Reprodução/Redes Sociais)

A Universidade de Vitória, uma das mais prestigiadas do país, foi construída sobre um território indígena – estranha forma de homenagear um povo – e detém um prédio totalmente dedicado à memória da tradição ancestral. Repleta de fotos e gravuras que representam as tradições locais, me surpreendi com um prédio eminentemente vazio, como se fosse apenas o que sobrou da memória de um povo esquecido. Os corredores, desprovidos de maiores informações sobre os “Primeiros Povos” ou “Primeiras Nações”, faziam do prédio – muito bonito, por sinal – mais uma celebração ao esquecimento do que um resgate das tradições. Não encontrei nenhum indígena administrando o recinto. Um tanto desapontado, resolvi ir para a biblioteca da Universidade.

A biblioteca da Universidade de Vitória é tudo o que um estudante procura: milhares de livros de todos os assuntos possíveis podem ser encontrados em suas estantes, separadas por estreitos corredores. Mais de uma vez, me perdi entre seus livros. No entanto, apesar de um acervo tão vasto, ao chegar na estante reservada à “Antropologia” e “História”, por mais que procurasse, não encontrei nenhuma obra sobre as “Primeiras Nações”. Havia do Brasil, Peru, América Central… mas nenhum do Canadá, nem mesmo da Colúmbia Britânica ou da Ilha de Vitória. Nada sobre o território indígena onde a Universidade havia sido construída. O máximo que encontrei foi sobre a história da colonização e dos pioneiros europeus que chegaram na região… como se fossem os primeiros habitantes do lugar. Talvez minha procura não tenha sido meticulosa o bastante, embora eu constantemente retornasse ao mesmo acervo, sem nunca ter tido sucesso.

Para conhecer a história dos indígenas no Canadá, resolvi procurar nas livrarias da cidade alguma obra relativa ao assunto. Outra vez, encontrei muita dificuldade. Ao contrário da Bolívia e do Peru, onde com certa facilidade é possível encontrar referências do registro indígena (seja na Antropologia, na História ou na Arqueologia), as livrarias de “Victoria” e Vancouver não oferecem a mesma oportunidade. Depois de “garimpar” por alguns lugares, encontrei apenas uma obra sobre o assunto: “The First Nations of British Columbia, an anthropological overview”. Sem querer, acabei encontrando um pequeno livro de um autor contestador e, para não dizer, revolucionário dentro do contexto do registro histórico da academia canadense. Quase uma “Pedra de Roseta” da antropologia na Colúmbia Britânica, para não dizer de todo o território nacional. Robert Muckler toca fundo na problemática e na debacle da questão indígena no Canadá. Com uma honestidade distinta do senso comum, ele aponta a usurpação dos territórios, o sequestro das crianças – levadas aos infames “orfanatos” para indígenas – a separação dos diferentes povos em “reservas” onde foram forçados a conviver com outros grupos de etnias distintas, a perda da língua e, finalmente, a perda da identidade. A obra parece indicar uma opressão fria e silenciosa, esquecida, ocultada, diferente do morte-cínio documentado nos territórios de colonização espanhola e portuguesa, assim como o conhecido genocídio ocorrido nos Estados Unidos. O genocídio cultural canadense foi tão bem-sucedido que nem mesmo os antropólogos conseguem diferenciar e identificar as centenas de etnias que havia na Colúmbia Britânica. Elas simplesmente “desapareceram” com os confinamentos onde os distintos povos, agrupados e forçados a conviver no mesmo espaço, foram “diluídos” pela mestiçagem entre os grupos. Diferente do Brasil, por exemplo, onde ainda é possível identificar tupis, pataxós, cariris e outras etnias (assim como nos países andinos), o que ocorreu na Colúmbia Britânica (e acredito que em boa parte do país, mas esta seria apenas minha opinião) foi o desaparecimento de centenas de grupos étnicos nos confinamentos perpetrados pelo governo anglo-saxão. Para não falar das “escolas” para as crianças indígenas: orfanatos administrados pela Igreja Católica, onde centenas, para não dizer milhares, de crianças foram sequestradas e separadas de suas famílias para serem “educadas” para a civilização. As ossadas e os cemitérios clandestinos descobertos nessas “escolas”, onde até agora centenas de crianças e jovens foram encontrados, demonstram a macabra atmosfera e o histórico de maus-tratos a que as crianças foram submetidas: um genocídio frio e cruel que traz à tona a verdadeira forma como os indígenas foram tratados pela administração da Coroa Britânica e do Governo Canadense. Como morreram essas crianças? Por que ocorreram tantas mortes em confinamento? O que ocorria realmente nessas “escolas”? Qual foi o papel da Igreja e do governo, que agiram em conluio? Qual seria a indenização para os sobreviventes que estão vivos atualmente? São questionamentos que, pelo menos enquanto eu estava no Canadá, o governo não parecia disposto a encontrar respostas, embora esteja constantemente propalando o quanto a questão indígena é importante para a sociedade. As lojas de Vancouver e “Victoria” estão repletas de artigos e artesanatos belíssimos de orcas, águias e outros animais do “panteão” indígena. Camisas e roupas atraem turistas ávidos por um símbolo indígena, embora ignorem seu significado e seu povo. Nenhum indígena na avenida repleta de lojas de produtos “First Nations” para a elite global. Encontrei apenas um indígena em uma loja com quem tive uma breve conversa. Parece que a história de opressão e genocídio deve ser esquecida para que o indígena siga sendo um produto de consumo na sociedade canadense.

Apesar de tudo, Muckler sinaliza que existe um movimento de revitalização da língua indígena no território do Yukon. Existe de fato um ressurgimento das tradições ancestrais na região da cidade de “Whitehorse”, a capital com maior número de indígenas per capita do país. Trata-se também de uma das regiões mais frias e selvagens do Canadá. Fronteira com o Alasca, o Yukon seria o que, para os indígenas brasileiros, sempre foi a Amazônia, um território distante e inóspito ao homem branco onde encontraram proteção entre o clima subártico e os ursos pardos das planícies, protegidos pela cadeia de montanhas do Pacífico onde está o ponto culminante do país, o Monte Logan (5.959 m). Com um inverno que pode passar dos 40 graus Celsius negativos, os indígenas, protegidos da “civilização”, tentam salvar sua cultura, revivendo a força de sua herança ancestral.

Não satisfeito com o que eu vi na costa da Colúmbia Britânica, resolvi passar dois anos nas Montanhas do Kootenay, na pequena cidade de Castlegar, desconhecida até mesmo por muitos canadenses. Trata-se de uma região de pequenas cidades e vastas pradarias no centro da província. As montanhas do Kootenay estão entre a Cordilheira do Pacífico e as Montanhas Rochosas. Comparadas com as Rochosas, são relativamente baixas, com um clima mais ameno e um verão mais extenso que em outras partes do Canadá, (embora chegue a 20 graus negativos no inverno). Sendo um território indígena, eu esperava encontrar alguns pelas pequenas cidades. O rio Kootenay serpenteia vagarosamente as montanhas, e quando o vi pela primeira vez não consegui deixar de imaginar os primeiros povos ali pescando e caçando, abrigados pela floresta da cadeia montanhosa. Mas os indígenas não viviam nas cidades.

Infelizmente, passaram meses até eu encontrar a primeira indígena na região. Era uma idosa que parecia acompanhar uma também idosa anglo-saxã… parecia que estava cuidando da “senhora branca canadense”. Olhei para as duas e sorri: a anglo-saxã permaneceu impassível, a idosa indígena sorriu para mim como se pudéssemos falar sem emitir uma só palavra.

Em Castlegar, eu estava fazendo um curso técnico de meio ambiente na Faculdade Selkirk (Selkirk College). A pandemia de covid-19 era praticamente inexistente devido ao isolamento da região, distante de qualquer metrópole. Praticamente a meio caminho entre Vancouver e Calgary. Sendo assim, fiquei sabendo que haveria uma reunião dos sobreviventes das “escolas” de indígenas na Faculdade. O inverno havia terminado e eu esperava encontrar todo tipo de pessoas neste evento: antropólogos, professores, jornalistas…enfim, esperava encontrar toda a comunidade da região uma vez que o encontro seria na Faculdade e parecia não haver nenhuma restrição de público. Logo após a entrada principal da Faculdade (havia muitos indígenas do lado de fora) encontrei cerca de 200 pessoas assistindo aos depoimentos que eram feitos desde uma pequena mesa com um microfone. Olhei em volta e me surpreendi: não conseguia ver ninguém que não fosse indígena! Jornalistas, professores, autoridades…nada, ninguém! Os indígenas mal olhavam para mim. Na realidade, em sua maior parte me ignoravam, mas devem ter achado estranho aquele latino-americano (nem branco, nem indigena) entrar ali para assistir às sessões de depoimentos. Havia uma atmosfera de muita tristeza no local e eu não pude deixar de pensar que aquilo era o paradigma do destino de um povo colonizado: banimento e esquecimento.

Ao não ver uma autoridade, jornalista ou qualquer um que registrasse aquele evento percebi o grau de abandono dos povos originários no Canadá. Enquanto a mulher indígena relatava seus anos de vida na
“escola”, todos escutavam com um ar de tristeza e resignação. Senti como se tivessem extirpado o espírito daquele povo. Queria escutar os gritos dos guerreiros e a raiva dos indígenas brasileiros, mas tudo o que eu podia ver era uma imensa melancolia. Comecei a me sentir um intruso, um invasor.
Depois de uns vinte minutos parti e saí andando pelo campus com um sentimento de imensa injustiça…

Quando estava em “Victoria”, conheci uma indígena. Uma jovem com uma alma nobre que tinha problemas de saúde devido a sua condição de “estrangeira” em sua própria terra. Ela falava comigo de uma forma que parecia ter uma imensa gratidão apenas por ser reconhecida por mim. Dotada de uma alma sensível e afetuosa, após poucos encontros ela já me tratava como se me conhecesse a vida inteira. E eu ficava me perguntando o que seria deste valoroso povo se não fosse o destino cruel que lhe foi imposto. Ser um “estrangeiro” em sua própria terra parece ser o destino da maioria dos povos indígenas do Canadá. Do topo das montanhas do Kootenay, eu sempre vislumbrava o rio e as águias douradas. De repente, passou pela minha cabeça que eu gostaria de saber o nome indígena para essas águias que sempre me acompanhavam. Como os povos originários as chamavam? Como foi possível apagar da História a cultura de milhares de indígenas a ponto de até eles esquecerem quem realmente são? Posso
apenas esperar que desde as planícies do Yukon este valoroso povo possa algum dia ressurgir nas asas de uma águia imponente e impassível, encontrando outra vez seu espírito, seu caminho e seu futuro.

(*)André Lopes é graduado em Direito e mestre em Desenvolvimento Sustentável e Recursos Naturais pela UPeace: Universidade das Nações Unidas.

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