Fogo em divisa do AM e RO marca grilagem e desmate

Reserva Extrativista Jaci-Paraná, ardendo em fogo, em Porto Velho (Christian Braga/Greenpeace/Reprodução)

Com informações do Infoglobo

PORTO VELHO – O cenário do final da temporada de queimadas — setembro — na divisa entre Amazonas e Rondônia deste ano é desolador. Na última semana, a equipe do GLOBO acompanhou uma expedição de ONGs e cientistas em Lábrea (AM) e Porto Velho (RO), que flagrou várias áreas de até 2.500 hectares de queimadas intencionalmente. Em um sobrevoo com avião monomotor pela região, pesquisadores atestaram indícios de grilagem, em operações com financiamento milionário para ocupação pela pecuária. Em alguns casos, há sinal de ligação com a madeira ilegal.

Não é preciso por os pés no chão para testemunhar o estrago feito pelo fogo. A 2.000 metros de altitude, dentro do avião, já se pode sentir o cheiro da madeira queimada. Em companhia da geógrafa Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pequisa Ambiental da Amazônia (Ipam), O GLOBO voou sobre áreas de desmate no último ano onde, claramente, também havia fogo ateado nos últimos dias. Em alguns lugares, ainda aceso. Dezenas de cortinas de fumaça foram cruzadas.

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Por serem intencionais, todos os incêndios avistados são ilegais, uma vez que o Brasil está em uma moratória de queimadas que dura até o fim de outubro. A marca do dinheiro e da ilegalidade está, por exemplo, em duas pistas de pouso clandestinas vistas durante o sobrevoo.

“O que chama a atenção em Lábrea é que, para promover desmates tão grandes numa área de fronteira da atividade agropecuária, sem infraestrutura, é preciso ter muito capital. Essa área está sendo ocupada por gente que tem muito dinheiro”, diz a cientista.

Pela dinâmica de ocupação na área da Amacro, Alencar diz crer que há indício de que a madeira ilegal está financiando parte da operação de desmate. Com a queda da fiscalização e uma maior facilidade de se fraudar documentos para exportar madeira nos últimos anos, diz, o setor está mais rentável.

“O que eles fazem é que as toras com valor econômico são tiradas antes e mandadas para a serraria”, diz. “Se a serraria for muito longe, como é em Lábrea, é preciso antes avaliar se a operação se paga. Nessas áreas que a gente viu com cerca 2.000 hectares desmatados talvez seja possível tirar cinco toras por hectare, o que seriam umas 10 mil toras. Se você tem alguém para receber isso, já consegue pagar a operação do desmate”, explica.

Todo o sobrevoo da região feito pelo GLOBO teve o acompanhamento de uma especialista em navegação do Greenpeace, que levou os pilotos até áreas desmatadas em 2020 e 2021, detectadas pelo sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As queimadas observadas no trajeto haviam sido apontadas poucas horas antes pelas câmeras do sistema VIIRS, em satélites da Nasa. Todos os dados usados no rastreamento são públicos, aos quais autoridades de fiscalização têm acesso também.

A área observada faz parte de uma nova fronteira de desmatamento da Amazônia, que se concentra no entroncamento de Amazonas, Acre e Rondônia. Apelidada de Amacro (acrônimo das siglas dos estados), a região é núcleo de um projeto que governos locais anunciam para “pecuária sustentável”.

Florestas públicas

No trajeto, O GLOBO viu fogo recém-ateado a árvores de áreas mapeadas como “florestas públicas não destinadas”, ou seja, áreas da União que não foram designadas como unidade de conservação nem terra indígena. Várias delas estão em lotes que possuem registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um indício forte de grilagem, a apropriação ilegal de terras públicas.

Há prova abundante de que os incêndios são intencionais. Do avião monomotor são visíveis sinais que satélites não registram, como as “leiras”, madeira derrubada e juntada em fileiras para ser queimada e pulverizada mais facilmente. As chuvas pontuais de setembro não são capazes de apagar alguns dos incêndios, que ressurgem da brasa. Algumas áreas estavam sendo queimadas já pela segunda vez.

O solo recém-queimado adquire tom cor-de-vinho. Sobre ele ficam linhas esbranquiçadas: cinzas das árvores grandes que queimam deitadas por último e deixam seu desenho impresso no chão. O padrão retangular das áreas queimadas também desmonta o discurso dos produtores rurais de que os focos de fogo na região se devem a queimadas em áreas de ocupação legal que escapam acidentalmente para a floresta.

No lado rondoniense da divisa, os satélites detectaram muitas queimadas também. Nesta zona, o fogo ocupa tipicamente áreas menores que as de Lábrea. Uma área recente visitada pelo GLOBO em Candeias do Jamari (RO) ainda estava em brasa e exibia várias cicatrizes de queimada menores, da ordem 300 a 600 hectares. O terreno arrasado fica em um polo processador de madeira, junto à Floresta Nacional do Jacundá.

Queimadas se refletem na qualidade do ar em Porto Velho. Depois que que a fuligem atravessa áreas úmidas, ganha um cheiro característico de defumação na cidade, que é possível sentir já na pista do aeroporto.

O GLOBO visitou por terra uma área de queimada em Candeias do Jamari (RO). Quem tentasse olhar o fogo de perto não conseguiria: a temperatura do solo queimado poucas horas antes assaria os pés de quem não tivesse botas especiais.

Para protestar contra o desmate e o fogo na região, as ONGs  Amazon Watch, Greenpeace e Observatório do Clima, que promoveram a expedição, atuam de maneira diferente agora. O Greenpeace, conhecido por ações cinematográficas, como invasões de propriedades privadas para estender faixas gigantes, está se destacando mais em operações de inteligência durante a pandemia. A ideia é levantar informação para complementar dados de satélites e subsidiar autoridades com dados para fiscalização, além de ajudar a imprensa a expor o problema.

“A gente quer entender quem está agindo no território, o que eles estão produzindo, quem está comprando essa produção e até onde ela pode chegar”, diz Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace em Manaus.

O GLOBO perguntou ao Ministério do Meio Ambiente se houve autuações e embargos de terra na região nos últimos meses. A resposta, porém, não permitiu saber se a região esteve no foco da fiscalização.

“O Ministério do Meio Ambiente (MMA), de forma integrada com o Ministério da Justiça e Segurança Publica, Ministério da Defesa e demais órgãos do governo federal, têm realizado operações de combate ao crime organizado e aos crimes ambientais em todas as regiões brasileiras, com destaque para as ações conjuntas de combate ao desmatamento ilegal, realizada ao longo dos últimos meses”, afirmou a pasta em comunicado. “Como fruto dessa atuação integrada, o desmatamento na Amazônia sofreu uma queda de 32,45% no mês de agosto, se comparado com o mesmo período do ano passado.”

O recorte mensal destacado pelo MMA, porém, está num contexto preocupante. Os últimos três anos foram aqueles com as três maiores áreas de alerta de desmate dos últimos 14 anos, segundo o sistema Deter. O sistema Prodes, que mede o desmatamento com precisão, aponta para mais de 10 mil km² de desmate por ano no período.

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