Fome e exaustão: dura vida de entregadores no Brasil chama atenção do mundo
27 de março de 2022
Entregador da empresa Ifood (Marcello Casal/Agência Brasil)
Com informações do Infoglobo
Há quatro anos, uma proposta sedutora e “fácil” de trabalho chegou a David Ferreira, então com 17 anos, por amigos. Popularizava-se o universo dos aplicativos de entrega e a possibilidade de atuar como “entregador” vinha sem muitas exigências. Ele, que já tinha uma bicicleta, seguiu o caminho traçado por muitos jovens. Mas, passado o tempo, o rapaz, que mora em Americanópolis, Zona Sul de São Paulo, já não guarda ilusões. Ele diz que perdeu as contas das vezes que não teve dinheiro para pagar uma refeição durante o dia de trabalho e, agora pai, conta que a quitação de contas costuma atrasar.
Ferreira não teve outras oportunidades para um emprego fixo na sua vida. E, apesar das dificuldades, traça planos “dentro do ramo” para arcar com as obrigações principais, como pensão da filha: ele faz economias para tirar a carteira de habilitação de moto e carro, para “subir na profissão” e ganhar um pouco mais.
O jovem faz parte de um universo de 1,4 milhão de entregadores e motoristas por aplicativos que existem no Brasil, segundo levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em outubro passado. Que, diante da realidade de 12 milhões de desempregados do país, que atinge um terço dos brasileiros entre 18 e 24 anos, se submetem a condições precárias de trabalho.
Nas últimas semanas, grupos organizados de entregadores realizaram uma onda de protestos e paralisações, batizados de “breque”, para reivindicar o aumento das remunerações e outras melhorias na segurança. A rotina de dificuldades desses trabalhadores foi avaliada pela rede de pesquisa Fairwork, coordenada pela Universidade de Oxford, que deu notas baixas para todos os aplicativos no Brasil, em estudo sobre as condições de trabalho oferecidas aos entregadores. A maior nota aplicada foi 2, sendo que o máximo é 10, para Ifood e 99. Já Uber recebeu 1, e Get Ninjas, Rappi e UberEats sequer pontuaram.
“Minha meta é fazer R$50 por dia. Num dia bom consigo R$70, às vezes, no final de semana, chego a R$100”, conta David Ferreira, que trabalha cerca de 12 horas por dia. “Consigo sobreviver, pago aluguel e pensão. Mas às vezes passo aperto. O pior é quando passo fome na rua, volta e meia acontece, aí fico só com o cheirinho de lanche na mente”.
Quando começou, Ferreira era menor de idade. Ele não se lembra como fez o cadastro.
“Naquela época era bem melhor, eles pagavam mais, havia taxas extras direto. Mas, no início da pandemia fechou muita loja, e entrou muita gente que ficou desempregada”, explica, referindo-se à diminuição dos pagamentos com o aumento da força de trabalho.
Em Recife, Jessica Barbosa, de 30 anos, foi uma das pessoas que entrou para o ramo das entregas após perder o emprego — de operadora de caixa de restaurante — durante a pandemia. Hoje, ela diz que só não está numa situação pior porque tem a ajuda de seu pai e de sua mulher, que mora com ela no Alto de Santa Teresinha. O financiamento da moto que comprou para trabalhar está com três parcelas atrasadas.
“Ganho entre R$70 e R$100 por dia, mas descontando a gasolina, infelizmente sobra quase nada. Às vezes trabalho mais de 15 horas”, diz Jessica, que quer fazer faculdade de administração.
Jessica Barbosa diz que só não passa fome porque conta com ajuda do pai e da esposa Foto: Arquivo Pessoal
Falta de carteira assinada, de direitos e garantias, além da insegurança nas ruas, são queixas frequentes entre os entregadores ouvidos pelo GLOBO. Outra, unânime, é a falta de voz junto às empresas, em situações em que são responsabilizados por prejuízos nas entregas, após reclamações. Normalmente, após um cliente relatar, no aplicativo, que não recebeu sua entrega ou que o pedido chegou violado de alguma forma, os entregadores são automaticamente bloqueados por um tempo determinado. Dependendo da gravidade ou do custo do pedido, o bloqueio é permanente. Caso queiram se defender ou justificar, os entregadores raramente encontram canais fáceis de contato.
Durante a entrevista ao GLOBO, a entregadora Maysa Monte interrompeu a conversa para mostrar a mensagens de um colega reclamando de um bloqueio.
“Ele vai ter que abrir outra conta, com o CPF de uma mulher. Vai acabar sendo bloqueado de novo, mas é o que a gente faz para trabalhar”, explica a entregadora de 31 anos, que vive em Olinda.
Maysa se queixa da falta de presença física dos aplicativos nas cidades, o que dificulta as reclamações após situações de bloqueios.
“Gosto de trabalhar como entregadora, só não gosto da insegurança e instabilidade. Aplicativo é bom porque planejo meu horário, mas, se fosse em um emprego de carteira assinada, eu poderia lidar diretamente com meu chefe”, diz Maysa, que roda diariamente, fazendo entregas de bicicleta, mais de 10 horas. “Meu objetivo no ano é fazer um curso de Libras e de informática e tentar outro emprego”.
Maysa Monte faz entregas de bicicleta e diz que consegue pagar as contas do mês, mas reclama dos bloqueios injustos Foto: Arquivo Pessoal
O baiano Luciano de Oliveira Rosa, de 43 anos, mora em São Paulo há 35 e é motofretista há 12. Começou trabalhando em pizzarias, mas há cerca de cinco anos foi atraído pelos aplicativos. Hoje, ele diz que consegue se manter porque faz entregas, como bico, para um escritório de advocacia, o que compensa os dias de pouco movimento do delivery.
Luciano de Oliveira Rosa , entregador de São Paulo, frequentemente precisa pagar fiado na lanchonete, para poder comer (Edilson Dantas / Agência O Globo)
Recentemente, sua renda foi duramente afetada porque foi bloqueado de dois aplicativos, um por ter se recusado a realizar uma entrega porque desconfiava que havia drogas numa embalagem, outro porque uma cliente relatou que uma entrega de mais de R$ 200 não havia chegado. Ele contesta.
“Minha rotina é acordar 8h e ligar o aplicativo. Só termino às 22h. Os aplicativos estão numa exploração arretada, abusando. Alguns exigem equipamentos novos, mas não te dão suporte. Quero mudar de ramo, mas está difícil”, diz Rosa.
Garantia de direitos
Em São Paulo, Edgard Francisco da Silva, conhecido como Gringo, fundou a Associação dos motofretistas de aplicativos e autônomos do Brasil (Amabr), que luta pela regularização dos entregadores sob a lei 12.009/09, que reconhece direitos e dá isenções tributárias aos motofretistas. A organização também pleiteia reajustes anuais de remunerações. Para Gringo, hoje, mais do que os “breques”, a melhor arma que os trabalhadores têm são projetos de lei como o do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), aprovado no final do ano passado para garantir medidas de proteção na pandemia.
Para o procurador do Trabalho Tadeu Lopes da Cunha, da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT), os serviços de aplicativo se enquadram nos quatro princípios que fariam valer o vínculo empregatício: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação. Ao todo, o MPT já instaurou 625 procedimentos contra 14 empresas de aplicativos, que se dividem em quatro temas principais, explica o procurador: vínculo empregatício; segurança de trabalho na pandemia; suporte e apoio, de equipamentos e logística; e os bloqueios recorrentes aos entregadores
“Mundialmente, temos percebido uma série de decisões favoráveis ao reconhecimento do vínculo de emprego. Se o Brasil não seguir essa linha, estará na contramão”, diz Lopes.
O GLOBO procurou as empresas dos principais aplicativos do mercado para se posicionarem sobre o tema. O Ifood disse que “respeita o direito de manifestação e esclarece que mantém o compromisso de diálogo aberto com os entregadores para buscar melhorias”. Sobre projetos de lei em tramitação, a empresa defendeu o “amplo diálogo” e a defesa de “novos modelos de trabalho”, para garantir autonomia e flexibilidade. A Rappi disse que “mantém um diálogo constante” com entregadores e, entre iniciativas recentes, citou que, entre junho de 2021 e fevereiro de 2022, aumentou 40% as tarifas recebidas pelos entregadores. A Lalamove e a Uber não responderam.
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