Força pluriétnica – autocartografia de aldeias urbanas de Manaus vira instrumento de resistência de povos indígenas

O professor Glademir Santos estudou a organização social das aldeias urbanas em Manaus (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS – Uma autocartografia sobre a organização social de aldeias urbanas na capital amazonense tornou-se instrumento de resistência e reconhecimento por direitos fundamentais dos povos indígenas. Em entrevista à CENARIUM, o integrante do Laboratório Nova Cartografia Social da Amazônia Glademir Santos revela detalhes sobre o estudo, que analisou a coexistência de grupos pluriétnicos com memórias, saberes e a modernidade.

“Eu percebi como eles formam comunidades até mesmo por meio dos conflitos, mais ainda pelo desejo de serem reconhecidos na cidade. Esse aspecto é permanente em todos os grupos e unidades de caráter étnico em Manaus”, diz, inicialmente, o doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia, que defendeu a tese sobre “Territórios pluriétnicos em construção: a proximidade, a poiesis e a práxis dos indígenas em Manaus”.

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Glademir ressalta que a capacidade de reivindicação das comunidades por direitos básicos como território, saúde e educação se desenvolveu ao ponto de unir lideranças em torno de associações compostas por vários povos indígenas. “Como cidadãos, eles encontram estratégias de formar unidades sociais”, destacou o pesquisador, que menciona o Parque das Tribos, na zona Oeste de Manaus, como um exemplo do feito, que abriga 700 famílias, sendo 80% indígenas de 35 etnias.

Resultados

Os principais resultados da pesquisa apontam para a criação de associações, que, em sua maioria, passaram a ser representadas por uma associação majoritária, pela Coordenação dos Povos Indígenas em Manaus e Entorno (Copime), entre as quais a mais antiga é a Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn). Estas associações ajudaram a aumentar o número de indígenas na educação superior, que segundo Glademir, são fatores chaves para o avanço da tomada de decisões.

“Hoje, tem a Copime e pequenas associações, como a Amarn. Então, é essa forma de organização que esses povos aprenderam, resultado da experiência vinda de lá [das etnias e comunidades] para cá [cidade]. Mas, eles aprenderam, pela experiência de liderança, a manter essa relação, sobretudo no campo acadêmico. E, hoje, você vê um número significativo de lideranças ocupando as universidades”, destacou o pesquisador.

Memória e ‘Etnotrauma’

A tese de doutorado destaca que nos grupos pluriétnicos a identidade de um povo indígena vivencia uma nova forma de organização. O movimento é interpretado como “identidade coletiva”, sendo a junção habitual de várias etnias. “Mas, isso não elimina uma memória que se atualiza nessas relações. Inclusive, eles aprendem com a experiência do movimento indígena dessas localidades específicas”, apontou Santos.

Nessa relação de identidade e memória, o personagem que se destaca na pesquisa é Manuel Paulino, do povo Karapãna. O indígena foi casado com Otília da Silva, do povo Piratapuia. Ambos saíram do Alto Rio Negro e residiram em Manaus, na área do Tarumã-Açu, zona Oeste da capital. Já falecidos, deixaram descendentes que hoje são as únicas representações da memória étnica deixada com a partida do casal.

“Os Karapãna apresentam uma trajetória de vida do Alto Rio Negro até Manaus. A interpretação que eles fazem de si mesmos, ao mesmo tempo os liga a uma relação de luta, uma riqueza de informações. Nós vemos que aquele espaço habitado e ordenado por eles revela uma forma de vida diferenciada dentro do perímetro urbano”, destacou Santos.

Perda de referência

“É uma capacidade social de fazer acordos, mas alguns acordos são conflituosos a ponto de eles perderem casas, terem a casa queimada”, destacou o pesquisador, que mencionou, ainda, a trajetória de vida do indígena e o ‘etnotrauma’.

O conceito de etnotrauma é explicado pelo pesquisador, que descreve que lideranças indígenas, como Paulino, são espécies de “biblioteca vivas”. Pessoas que trazem consigo conhecimentos transmitidos por meio da oralidade ao longo das gerações.

“Hoje, eu vejo que o seu Paulino e toda a família sofriam com algo que eu chamo de ‘etnotrauma’, a perda da referência de sentido. Quando a dona Otília morre, eles sentem fortemente a ausência e, mais recentemente, o seu Paulino, porque é a perda da memória viva. É uma trajetória de vida que se vai sem recuperação, a não ser pela própria memória dos filhos”, ressalta.

Trauma

Além da trajetória de vida da família dos Karapãna em Manaus, o ‘etnotrauma’ é identificado, principalmente, na história de seu Paulino. Fato que revela uma relação conflituosa entre o Estado, como instituição colonizadora, a exemplo da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a violência e morte de indígenas, como os Waimiri Atroari.

“O seu Paulino dizia que fugiu dos salesianos porque a educação não era como ele pensava. Ele entrou na Funai e ali há o trauma que ele carregou na história e na experiência. Um dos fatos, nos anos 1970, ele desce do helicóptero para resgatar o corpo do sertanista Gilberto Pinto e testemunhou o genocídio dos Waimiri Atroari sendo cobertos pelo barro”, lembrou o pesquisador, que ressaltou também traumas que levaram os filhos de Paulino a lidar com os desafios do uso dos tradicionais cocares.

Sobre o pesquisador

Graduado em Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Glademir Sales dos Santos tem 55 anos e começou a trajetória de pesquisa em 1990, com a especialização em Antropologia na Amazônia.

Santos possui doutorado em Sociedade e Cultura da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação da Ufam. Glademir também é assessor técnico da Gerência de Educação Escolar Indígena da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Manaus.

Atualmente, é pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), iniciativa que inclui profissionais das áreas de Antropologia, Direito, Geografia, Biologia, Sociologia e História, e mais de 1.800 agentes sociais, com o objetivo de dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais, permitindo um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, analisando as manifestações de identidades coletivas, que se referem a situações sociais peculiares e territorializadas.

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