Função decisiva para fiscalização de atividades ilegais no Vale do Javari foi ignorada pela Funai


18 de junho de 2022
Função decisiva para fiscalização de atividades ilegais no Vale do Javari foi ignorada pela Funai
O gabinete do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, negou por três vezes a nomeação de um servidor efetivo para a função (João Laet/AFP)
Com informações da FolhaPress

ATALAIA DO NORTE (AM) – A presidência da Funai (Fundação Nacional do Índio) decidiu deixar vago um cargo decisivo para a fiscalização, monitoramento e desenvolvimento da Terra Indígena Vale do Javari, no Estado do Amazonas.

A função é considerada fundamental, ainda, para a proteção de povos isolados e de recente contato que vivem no território.

O cargo está vago há mais de um ano, desde maio de 2021. O gabinete do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, negou por três vezes a nomeação de um servidor efetivo para a função.

O pedido para a nomeação foi feito pela coordenação da Funai na região — a unidade do órgão fica em Atalaia do Norte (AM), a cidade mais próxima da terra indígena.

A ausência de um funcionário de carreira que atua na fiscalização cria, na prática, um incentivo para o avanço da pesca e da caça ilegais na região onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram mortos.

Essas atividades ilegais são, hoje, a principal linha de investigação para estabelecer uma motivação do crime.

O cargo que segue vago é o de chefe do Segat (Serviço de Gestão Ambiental e Territorial), que só pode ser ocupado por um servidor do quadro efetivo.

A exoneração do último responsável ocorreu em maio de 2021. Depois disso, um pedido de nomeação de um servidor efetivo foi enviado a Brasília, tramitou por áreas técnicas e acabou barrado pela presidência da Funai.

O pedido foi reiterado duas vezes, e negado, novamente, em ambas ocasiões, segundo as fontes ouvidas pela Folha. A alegação da presidência do órgão foram fatores de “conveniência e oportunidade”.

Ao chefe do Segat cabe uma articulação com órgãos como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o Exército para ações de fiscalização e repressão a crimes ambientais na região da terra indígena.

As articulações mais frequentes são com o Exército, em razão da quase completa ausência do Ibama na região do Vale do Javari.

Com o cargo de Segat vago, praticamente deixaram de ocorrer operações de fiscalização e monitoramento na terra indígena e nas imediações.

Sem fiscalização, de acordo com relatos feitos à Folha, atividades de pesca e caça ilegais passaram a ser cada vez mais intensas na região, dentro e fora da terra indígena.

O interesse especial da atividade predatória é pelo pirarucu, um peixe caro e que não pode ser pescado fora de plano de manejo; e pelo tracajá, um cágado bastante apreciado pelos colombianos — Atalaia do Norte está na tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia.

As mortes de Bruno e Dom, que ficaram desaparecidos por 11 dias após percorrerem o Rio Itaquaí, nas proximidades da terra indígena, têm relação com as atividades de pesca e caça ilegal na região, segundo as investigações da Polícia Civil do Amazonas e da PF.

O pescador Amarildo Oliveira, o “Pelado”, confessou participação no assassinato dos dois, segundo informação divulgada pela PF. “Pelado” disse que o crime teve relação com as barreiras impostas por Pereira à atividade de pesca ilegal.

Bruno era servidor da Funai e licenciou-se do órgão após ser exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato.

Começou a trabalhar na Univaja (União dos Povos Indígenas Vale do Javari) e foi decisivo para a estruturação do serviço de vigilância indígena, composto por populações que vivem no território demarcado.

A vigilância indígena acaba exercendo o papel que deveria ser feito por órgãos do governo.

O esvaziamento desses órgãos, como é o caso da falta de um chefe do Segat, na Funai, em Atalaia do Norte, e o avanço de atividades ilegais, em especial, a pesca do pirarucu, levaram à estruturação do serviço de vigilância indígena.

A Funai já teve mais de 30 servidores na unidade, em Atalaia do Norte, há mais de 10 anos. Hoje, são 12. A coordenação é responsável pela Terra Indígena Vale do Javari e mais quatro territórios demarcados na região.

Até ficar vago, o Segat estava voltado, principalmente, para uma tentativa de fiscalização e repressão de atividades de pesca e caça ilegais, em articulação com o Exército.

Hoje, são as bases de fiscalização da Funai, na entrada de terras indígenas, as principais responsáveis por tentativas de identificação de ilícitos nesses territórios.

Procurada, a Funai não respondeu a questionamentos enviados pela Folha.

Na última terça-feira, 14, a Folha mostrou que o governo federal abandonou o assentamento rural e o plano de manejo de pirarucu existente na região onde Pereira e Phillips desapareceram. As iniciativas, hoje, se restringem a placas gastas instaladas em pontos na beira do Rio Itaquaí.

O abandono do PAE (Projeto de Assentamento Agroextrativista) Lago São Rafael, criado em 2011, para assentar 200 famílias ribeirinhas, e do plano de manejo do pirarucu contribuiu para o incremento da pesca e da caça ilegal na região.

Uma placa do governo federal instalada próximo à Comunidade São Rafael, o último lugar visitado por Pereira e Phillips antes do desaparecimento, indica que ali existe um assentamento agroextrativista, com a responsabilidade de ser desenvolvido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

A placa está localizada ao lado de uma casa, que deveria ser um posto de fiscalização a cargo do Incra e do Ibama. Ao órgão ambiental, caberia fiscalizar o plano de manejo sustentável do pirarucu.

Não há fiscais ou investimentos no assentamento e em fiscalização. Nesse cenário, os ribeirinhos ficaram, em 2021, sem cota da quantidade de pirarucu que pode ser pescada, legalmente, nos lagos das comunidades, dizem os próprios moradores; e não há servidores do Incra e do Ibama em Atalaia do Norte, segundo o prefeito da cidade, Denis Paiva (União Brasil).

A unidade do Incra, em Benjamin Constant, município vizinho, foi fechada em 2021, conforme o prefeito.

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