Grupos de teatro da Amazônia resgatam histórias dos povos da floresta

Dani Mirini no espetáculo 'Kanarô' (Divulgação)
Com informações do UOL

SÃO PAULO – Quando um grupo de teatro terminou sua apresentação em uma comunidade de indígenas huni kuin, povo que habita o Acre e o sul do Amazonas, o que se ouviu não foram as tradicionais palmas, mas gritos de saudação. O público soou um alegre “ííííí”, se levantou, deu os braços, e dançou. Assim como os atores, maquiados e trajados em um figurino especial, eles também haviam se pintado e se vestido para compartilhar daquele momento.

O “teatro de floresta”, aquele que é feito na floresta ou que encena histórias dos povos da floresta, desafia as convenções do teatro ocidental tradicional e se aproxima da premissa do teatro de rua ao incorporar os sons, cheiros, intervenções de animais e outros seres da floresta.

“O teatro de floresta é vivo, porque a floresta é viva. Como a floresta, ele está em constante transformação”, disse a Ecoa a artista acriana Dani Mirini, que estuda o tema em seu mestrado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “Pra mim, ele é esse teatro formado já há um tempão aqui, quando chega a hora da noite e o seringueiro ou o ribeirinho que não têm uma televisão vão se reunir ao redor da fogueira e contar histórias de como foi a caça, como foi a pesca, como foi a agricultura, de como era há um tempo atrás, como eles chegaram ali.”.

PUBLICIDADE
Dani Mirini, do grupo Vivarte, em ‘Kanarô’ (Divulgação)

O grupo que se apresentou para os huni kuins, chamado Vivarte, já vem de uma caminhada de mais de 20 anos. Em 1998, Maria Rita Costa da Silva, mãe de Mirini, era professora de história e artes na escola Zuleide Pereira, na zona rural de Rio Branco, capital acriana. A maioria de seus alunos eram filhos de seringueiros. Percebendo que muitos tinham vergonha dessa origem, a professora resolveu criar uma peça de teatro com as histórias contadas pelos pais e avós dos estudantes.

O espetáculo, chamado de “As lorotas e os mitos da floresta”, acabou sendo o primeiro do Grupo Experimental de Teatro Vivarte. Segundo Mirini, ver encenadas histórias que muitas vezes nem conheciam ajudou os filhos de seringueiros a valorizarem e respeitarem mais a trajetória dos seus mais velhos.

“O teatro de floresta desmonta tudo que é o teatro ocidental. A gente que é ator fica estudando teatro grego e eu não desmereço, acho fantástico pra nossa formação. Mas depois de um tempo andando aqui nas comunidades, ouvindo as histórias, eu vi que a gente tem um teatro nosso”.

Memória e registro

A troca com comunidades locais segue alimentando os espetáculos do grupo. Antes da pandemia de Covid-19, Mirini recebeu um convite do povo yawanawá para contar a história ancestral do kanarô, arara de penas amarelas que leva no canto notícias e saudade entre os que estão ainda vivos e os parentes que já se foram.

A partir da experiência, o grupo pediu — e recebeu — autorização para transformar a contação em espetáculo. A montagem foi feita sempre com a participação de um yawanawá nos ensaios. “Kanarô” chegou a ser encenado pelo Vivarte em cidades do Norte e o grupo planeja apresentá-lo nas aldeias em breve.

Hoje, o grupo tem uma sede em Isaura Parente, bairro de Rio Branco onde, segundo Mirini, já houve uma comunidade tradicional formada em torno de um seringal. O lugar também é um ponto de encontro que recebe artistas e lideranças das comunidades tradicionais, promove oficinas e outras atividades.

“Quando a gente vai para comunidades mais afastadas, levando um espetáculo do grupo, sai de lá também com outras histórias. Dentro da floresta ainda se preserva muito esse encontro de um ser humano com o outro, da conversa. Então, é aquele compartilhar, aquela troca de ideias, de histórias, e é nessas trocas que a gente vai formulando nossos espetáculos”, conta Mirini.

Dani Mirini no espetáculo ‘Kanarô’ (Divulgação)

Ela enfatiza o cuidado e respeito necessários para lidar com essas histórias sem cair na apropriação e que há um processo de criação delimitado por cada povo. Mirini tem ascendência xukuru, povo indígena de Pernambuco, mas sempre viveu na cidade.

O trabalho do grupo também serve como um arquivo das narrativas tradicionais da região: o texto da peça e a filmagem dos espetáculos garantem que histórias pouco ou nada documentadas não se percam.

Viés de conscientização e pertencimento

Além do Vivarte, há muitos outros grupos de teatro na Amazônia trabalhando com o repertório cultural e histórico das comunidades tradicionais da região. Alguns integram a Rede Teatro da Floresta, formada há mais de uma década com companhias de sete Estados do Norte.

Em Boa Vista, capital de Roraima, a Cia Arteatro trabalha desde 2017 com narrativas locais, em geral de origem indígena. Muitas das apresentações do grupo são feitas em escolas e espaços culturais do município, onde grande parte do público é indígena.

Cena do espetáculo ‘Gotas de Saberes’, da Cia Arteatro (Jesus Cova)

Segundo Silmara Costa, atriz do grupo, as apresentações trazem histórias que as crianças muitas vezes reconhecem e que fazem com que sintam sua cultura valorizada. Assim como no caso dos filhos de seringueiros, é comum terem vergonha de mostrar que são indígenas. Para Costa, que é de origem macuxi, o trabalho também a reconectou a histórias pessoais.

Outro aspecto que perpassa trabalhos de diferentes grupos é a temática socioambiental. No caso da Cia Arteatro, os espetáculos mais recentes tocam em questões como o garimpo e a destruição da floresta e têm uma participação importante dos animais como personagens.

A pesquisa cênica feita pelo grupo O Imaginário, de Porto Velho (RO), também parte da memória e da tradição de comunidades ribeirinhas, quilombolas e seringueiras locais, resgatando aspectos históricos da formação da cidade, ligada à problemática construção da ferrovia Madeira Mamoré no início do século 20. Para o ator e fundador do grupo, Chicão Santos, as peças são também uma forma de refletir e dialogar sobre a sucessão de ciclos econômicos violentos que ocorreram na região.

Atrizes em cena no espetáculo ‘As Mulheres do Aluá’, do grupo O Imaginário (Leonardo Valerio/Divulgação)

“Tudo que a gente faz é uma ação política. Não adianta fazer o teatro mais bonito do mundo se o espaço onde eu vivo é povoado de lixo, o rio é contaminado, as nascentes destruídas”.

À Ecoa, ele ressaltou o compromisso com a floresta, as comunidades locais e sua ancestralidade e a potencialidade de que, através da arte, a Amazônia e o patrimônio imaterial dos povos da floresta reverberem pelo Brasil e mundo.

A Curadoria de Ecoa

As histórias e pessoas apresentadas todos os dias a você por Ecoa surgem em um processo que não se limita à prática jornalística tradicional. Além de encontros com especialistas de áreas fundamentais para a compreensão do nosso tempo, repórteres e editores têm uma troca diária de inspiração com um grupo de profissionais muito especial, todos com atuação de impacto no campo social, e que formam a nossa Curadoria. Esta reportagem, por exemplo, nasceu de uma conexão proposta por Toni Edson, curador de Ecoa.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.