Guerra da Ucrânia completa 100 dias com Rússia e Estados Unidos se testando

Conflito mudou a geopolítica e projeta um mundo mais perigoso, qualquer que seja o desfecho (Yasuhyoshi Chiba - 25.abr.22/AFP)
Com informações da Folha de S.Paulo

SÃO PAULO – O mundo como o conhecíamos, em sua dinâmica geopolítica, não é o mesmo há 100 dias, quando começou a Guerra da Ucrânia. Iniciada pela Rússia de Vladimir Putin na madrugada do dia 24 de fevereiro, a batalha já passou por três fases distintas, mas seu desfecho continua imprevisível.

No momento inicial, Putin aparentou achar que derrubaria o governo de Volodimir Zelenski com um assalto ambicioso em diversas frentes. Com efeito, em dois dias estava lutando na periferia de Kiev, fazendo governos ocidentais preverem o fim da guerra em talvez uma semana.

Soldado ucraniano examina estágio de propulsão de míssil balístico russo caído em campo
Soldado ucraniano examina estágio de propulsão de míssil balístico russo caído em campo – Yasuhyoshi Chiba – 25.abr.22/AFP

Erros militares centrados no binômio força insuficiente-falta de foco surpreenderam analistas, que viam a Rússia numa posição superior óbvia. Armas antitanque ocidentais começaram a fluir e estragar a ilusão do Kremlin.

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A fase seguinte foi o espraiamento dessa ofensiva inicial, com conquistas russas no sul do país, marcadas pelo brutal cerco a Mariupol, o mais simbólico até aqui. E com o fracasso russo em torno de Kiev e no norte do país.

Isso levou ao anúncio unilateral de Moscou: a guerra agora seria no Donbass, o leste russófono da Ucrânia que desde 2014 vivia um conflito separatista. Assim, a derrota em torno de Kiev tornou-se uma rápida retirada para fazer o que analistas viam como certo: concentrar força para um objetivo por vez.

Essa terceira etapa da carnificina está em curso desde o dia 18 de abril e parece estar em um ponto culminante, com a virtual queda da província de Lugansk para Moscou e a prevista tentativa de tomada final do Donbass, na forma da vizinha Donetsk — que tem talvez metade de seu território ainda sob controle ucraniano.

Seja como for, como disse Zelenski ao pedir mais ajuda militar nesta quinta (2), 20% de seu país já está ocupado.

Os problemas militares de Putin não acabaram. Há sérias dúvidas sobre a capacidade de Moscou de seguir em sua guerra de atrito com a falta de infantaria registrada em campo, como notaram dois dos melhores analistas ocidentais do conflito, os americanos Michael Kofman (CNA) e Rob Lee (King’s College) em um artigo nesta quinta no blog War on the Rocks.

Segundo diz um analista militar russo, que pediu anonimato, essa avaliação é realista e pode ser a senha para que Putin encerre a campanha e declare algum tipo de vitória. Mas, como ele continua, a imprevisibilidade é tanta que a Rússia seguir a guerra rumo à costa do mar Negro ucraniana é hipótese tão plausível quanto.

Em paralelo ao campo de batalha está o terremoto econômico e político, que apenas começou. O Ocidente aplicou sanções sem precedentes contra Putin, isolando de diversas maneiras a economia russa. A afluente classe média se viu pária no mundo, impedida de viajar ou de se relacionar propriamente com o exterior.

Putin contra-atacou com eficácia razoável e mantém sua popularidade, defendendo o rublo com manobras baseadas em seu maior trunfo: petróleo e gás. Ao obrigar seus clientes a pagar em moeda local, conseguiu retomar a cotação e ainda não viu uma catástrofe inflacionária, apesar dos sinais evidentes do problema.

A demora de meses para a Europa ensaiar um embargo ao petróleo russo, mas não ao gás, diz muito sobre o peso dessa arma energética. O proverbial pagamento diário de € 1 bilhão a Putin pelo continente vai diminuir, mas os detalhes burocráticos poderão trazer surpresas a médio prazo.

O Kremlin conta, afinal, com o que a ministra das Relações Exteriores alemã, Annalena Baerbock, chamou de “fadiga da guerra” entre os ocidentais. Para combater as evidências de cansaço, os Estados Unidos, principal ator no time do​s que querem ver Putin humilhado, aceleraram em etapas a qualidade do fornecimento de armas a Kiev. Passada a necessidade inicial por armas leves contra colunas blindadas, chegou a vez de obuseiros e outros sistemas mais pesados.

Há pegadinhas. A propalada aprovação do envio de lançadores de mísseis de artilharia, que colocou a Rússia em alerta e fez subir a tensão já grande entre as potências nucleares, trata por ora de meras quatro unidades que demorarão talvez cinco semanas para entrarem no jogo.

Mas ela diz mais sobre o substrato geopolítico central da guerra, com o perdão às vítimas em solo: uma espécie de enfrentamento terminal proposto por Washington a Moscou. Por toda conversa de evitar a Terceira Guerra Mundial, Joe Biden tem agido de forma tão agressiva quanto Putin, com a óbvia vantagem de ele não ter começado essa briga.

Na visão russa, contudo, o Ocidente é culpado: expandiu a Otan, a aliança militar liderada pelos EUA, a leste e ameaçou integrar a Ucrânia a ela, uma das causas da guerra.

Isso acabou superestimado, dado que objetivamente Kiev teria dificuldades em entrar no clube, assim como a França já deixou claro sobre o processo de décadas para absorvê-la na União Europeia. Além disso, Putin perdeu ao ver Finlândia e Suécia pedirem para aderir, enterrando sua neutralidade.

Biden e Putin, contudo, se testam todas as semanas usando o solo ucraniano de palco. As reiteradas ameaças nucleares do russo são apenas isso em princípio, mas é inegável e desconfortável que o mundo tenha se tornado um lugar em que tais bravatas podem ser feitas por quem tem o maior acervo de bombas atômicas no mercado.

​Há, por fim, o quadro geral marcado pela posição da China, que mantém seu apoio ao aliado Putin e até juntou-se a ele para sinalizar sua insatisfação com Biden ao fazer voar bombardeiros estratégicos em patrulha conjunta no mar do Japão enquanto o americano se encontrava com aliados do Pacífico para admoestar Pequim a não tratar Taiwan como a Ucrânia.

Essa intersecção coloca o conflito europeu, com americanos e russos vendo quem pisca primeiro, dentro do escopo da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China, rivais estratégicos do século 21. Putin declarou aliança com Xi Jinping 20 dias antes de invadir o vizinho, e a ambiguidade chinesa ao pedir a paz se mistura com os renovados sinais a Moscou. É um jogo de espera.

Já a paz poderá ou não vir em alguma forma negociada sobre o difícil acordo que russos e ucranianos desenharam em Istambul, no dia 29 de março. Ele previa um sistema de garantias mútuas que incluía a Rússia, algo parecido com o que os europeus fizeram no século 19 com a Bélgica — só para ver forças alemãs rompendo a fronteira em 1914.

Da mesma forma, Putin pode ou não se dar por satisfeito no Donbass. Kiev pode insistir na briga, animada pelos EUA, apesar das advertências europeias. Tudo pode escalar, e a recessão global parece dada para 2023 devido à confusão. A realidade de 23 de fevereiro é passado, enquanto os incertos milhares de civis e militares mortos e 4,7 milhões de refugiados dão testemunho da conta em sofrimento.

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