Indígena Kokama que perdeu 11 familiares por Covid-19, no AM, recorre à medicina tradicional
22 de maio de 2020
Guilherme Samias, de 64 anos morreu no último dia 14 de maio. (reprodução/ aquivo pessoal)
Carolina Givoni e Luís Henrique Oliveira – Da Revista Cenarium
MANAUS – “Meu pai era um guerreiro. Era um homem muito bom que tinha roça. Ainda trabalhou na construção civil e gostava de praticar artes marciais. Levou com ele muito conhecimento”. A fala com a voz trêmula é do líder tradicional do povo indígena Kokama, Edney da Cunha Samyas, 38 anos, que contou à REVISTA CENARIUM sobre a perda de 11 familiares para a Covid-19.
Morando em Tabatinga (AM), a 1.111 quilômetros de Manaus, Edney enviou à reportagem um vídeo exclusivo onde falou ainda sobre o uso da medicina tradicional, que, segundo ele, “salva mais vidas que a medicina do homem branco”.
“Meu pai gostava de reunir a família em casa para nos ensinar os hábitos da nossa etnia Kokama. Além disto, ele passou para nós os ensinamentos sobre a medicina tradicional como o chá da Ayahuasca. Já perdi 11 familiares para a Covid-19, entre eles o meu avô, meu pai, tios, tias, primos, entre outros. A medicina tradicional pode curar qualquer tipo de doença, mas achamos que a estrutura do homem branco seria melhor, mas não, nos enganamos. Fomos acreditar que a medicina do branco poderia curar a Covid-19 e perdemos quem mais amávamos”, disse Edney.
Líder Edney Samyas lista os parentes mortos por Covid-19. (reprodução)
O chá pelo qual Edney se refere é visto como um purificador completo, limpando a mente e o corpo, uma vez que pelo seu potencial alucinogênico, como o DMT, a harmalina ou a harmina, atua sobre o sistema nervoso, causando estados de consciência sobrenatural, o que leva as pessoas a ter visões, além de diarreia e vômitos como efeitos colaterais.
Segundo Edney, que também é líder da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia (TWRK), atualmente vivem 25 mil Kokamas no lado brasileiro, sendo 5.500 na área urbana de Tabatinga.
De acordo com Edney, o seu pai, Guilherme Samias, de 64 anos, apresentou sintomas e foi logo encaminhado ao Hospital de Guarnição de Tabatinga, gerida pelo Exército. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam), no último dia 5, o estado de saúde de Guilherme Samias, era grave, porém mantinha quadro estável da parte respiratória e hemodinâmica. “Deveríamos ter cuidado dele em casa”, finaliza.
Edney e o pai Guilherme Samias no dia em que ele foi internado. (reprodução)
“Responsabilizamos quem? Nesse ‘joga’ para um lado e para o outro, estamos perdendo nosso povo Kokamas. Pedimos socorro e não somos ouvidos. Onde estão esses medicamentos que nas nossas aldeias não chegam? Alguém me fala alguma coisa, pelo amor de Deus. Eu não aguento mais ver meu povo morrer à míngua”, desabafa a indígena Milena Kokama.
Milena ainda denuncia que o Hospital de Guarnição de Tabatinga (HGUT), teria sido negligente no atendimento aos indígenas do município. O Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani), estaria sendo exigido para que os procedimentos médicos sejam realizados.
“Não temos Rani porque não é o papel de um homem branco que vai definir quem eu sou. Basta que meu povo me reconheça dessa forma. É um absurdo um indígena morrer e estar etnia parda no atestado de óbito. É uma falta de respeito. Não é porque eu não tenho um Rani que eu deixo de ser indígena ou perca minha ancestralidade e a minha cultura”, disse Milena Kokama.
Quadro preocupante
Dados da Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB), reforçam a gravidade do depoimento de Milena e Edney. A Covid-19 possui uma taxa de letalidade de 14,3% entre os povos originários, que biologicamente são mais frágeis à infecções e vírus.
Para termos de comparação, a letalidade do novo Coronavírus na população urbana brasileira é de 6,5%. Com 121 mortes, 846 casos confirmados e 59 etnias atingidas, um abismo de 120% separa as duas realidades e acende o alerta para atenção à saúde indígena.
APIB divulgou dados na manhã desta sexta-feira, 22. (Arte/ REVISTA CENARIUM)
A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), sob comando da Fundação Nacional do Índio (Funai) só contabiliza os 31 óbitos e 606 casos de indígenas aldeados.
Para o advogado Tito Menezes, que pertence a etnia Sateré Mawé, a questão é tratada com caráter meramente burocrático pelas instituições, sem a consideração das vidas humanas. “A Sesai que ao negar atendimento a todos povos indígenas, independente do lugar de origem e atual residência, evidencia o racismo institucional. Uma das formas de cercear os direitos previsto na Constituição aos povos originários”, comenta.
Comando Militar se defende
Em nota, Comando Militar da Amazônia (CMA), responsável pela administração da unidade hospitalar de Tabatinga (AM), afirma que presta assistência médico-hospitalar aos militares e dependentes das três Forças lotados na região. E que por convênio celebrado com o Comando Militar da 12ª Região Militar (12º CMRM) e a Susam, atende tanto a população em geral, de Tabatinga e municípios vizinhos, quanto a comunidade indígena.
O CMA também ressaltou que cerca de 85% dos atendimentos realizados pelo HUGT são destinados à população civil, e que militares e seus dependentes representam apenas 15% dos atendimentos. No documento, é informado que o HUGT está equipado com leitos semi-intensivos e de enfermaria, que estão operando com 40% e 25% de suas capacidades, respectivamente. Os casos com maior gravidade estão sendo encaminhados para Manaus, por intermédio da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) aérea da Susam.
Ações estaduais
A comitiva da Saúde que visitou o HUGT, contou com a presença da secretária da Susam, Simone Papaiz, e do titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Robson Silva. A equipe visitou e acompanhou a entrega de 2 toneladas de respiradores e Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) realizadas pelo Ministério da Saúde (MS).
Para se ter uma ideia, no município de Tabatinga, foram entregues dez ventiladores pulmonares e 49 mil itens de EPIs. Na cidade, o atendimento referenciado dos doentes também está sendo feito no HUGT.
Papaiz conheceu a estrutura do Hospital do Exército, que tem realizado atendimentos de pacientes acometidos pelo novo Coronavírus, em sua maioria indígenas, uma vez que boa parte da população é formada por esse grupo. “O governo estadual tem estado muito preocupado com o crescimento de casos de Covid-19 no interior, e em especial entre os indígenas. Por isso, desde o início organizamos nosso plano de contingência, e isso permitiu que fôssemos um dos primeiros estados a receber auxílio federal. Continuamos em contato direto e constante com o general Eduardo Pazuello, para que mais ajudas sejam enviadas”, explicou.
Robson Silva, explicou que a secretaria tem desenvolvido ações preventivas, voltadas diretamente para as populações indígenas que vivem no estado, e avaliou que o índice de letalidade da Covid-19 entre indígenas tem ficado abaixo dos números de mortes em não indígenas. “Aumenta a nossa preocupação com a região, tendo em vista que os índices (da doença) têm crescido e que se trata de uma região onde a população é predominantemente indígena. Mesmo que os índices de mortes na saúde indígena sejam de três pessoas para cada 100 mil habitantes, enquanto entre os não indígenas são de sete pessoas a cada 100 mil, cada vida importa”.
À REVISTA CENARIUM, o presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI), Edivaldo Munduruku, afirmou que a pasta tem atuado diretamente na ajuda humanitária aos povos originários. “Estamos fazendo intensivamente a distribuição de cestas básicas, álcool em gel e máscaras, assim como o trabalho de conscientização do controle sanitário de entrada e saída entro das aldeias. O trabalho tem sido feito em parceria com a Funai”, disse o presidente da FEI.
Reforço de saúde na capital
A Prefeitura de Manaus, para reforçar o atendimento aos indígenas da comunidade Parque das Tribos, na capital do Amazonas, instalou uma UBS Móvel nas proximidades da aldeia para realizar testes para o novo Coronavírus e outras ações de saúde.
“Estamos gratos ao Tupã e à prefeitura pelo atendimento excelente”, disse o mais novo cacique Miqueias Moreira, 33, da etnia kokama, ao testar negativo para a Covid-19 na Unidade Básica de Saúde Móvel (UBS Móvel), da Prefeitura de Manaus, instalada na comunidade Parque das Tribos, bairro Tarumã, zona Oeste. “O prefeito [Arthur Virgílio Neto] abraçou a causa e nos deu acesso a essa unidade”, completou o indígena, que também é auxiliar administrativo, e perdeu o pai Messias Moreira, antigo cacique, para a doença provocada pelo novo coronavírus.
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