Inspirado no AA, chega ao Brasil tratamento para dependência em jogos eletrônicos

Arte retrata jovem "viciado" em jogos pelo celular. (Guilherme Oliveira/ CENARIUM)

Com informações do Infoglobo

RIO — Véspera de Natal de 2019, o professor A.B.P., aos 37 anos, era o responsável por uma série de tarefas familiares, que não conseguiu cumprir. Não era a primeira vez que ele se atrapalhava. Não conseguia mais se concentrar nas aulas de sua segunda graduação e já estava arrumando problema para o seu casamento. Mesmo sendo adulto, ele só pensava (e jogava) videogame.

“Comecei a jogar quando criança com o Atari, na adolescência ganhei um computador e comecei a jogar por ele e, depois, pelo celular. Há algum tempo percebi que eu tinha uma vontade muito grande de jogar e isto estava saindo do meu controle. Por exemplo, teve vezes que eu jogava no trabalho”. 

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A confusão provocada naquele Natal, no entanto, o levou a tomar uma decisão que mudou a vida dele e de todos em volta — decidiu experimentar um tratamento que tinha visto em um site americano, onde as pessoas compartilhavam suas experiências com o vício em jogos eletrônicos. O bom resultado o fez trazer para o Brasil a experiência, com interações em português. Detalhe: o anonimato é obrigatório nesse tipo de terapia.   

“Quando descobri o CGAA, comecei a dividir tudo o que estava me incomodando e percebi que outras pessoas tinham uma história de vida muito parecida com a minha”, relata A.B.P.   

Ele afirma que passou a participar diariamente das reuniões em inglês e falar sempre que podia. Nas conversas, os membros trocam dicas de como parar ou reduzir a frequência dos jogos, assim como manejar a ansiedade provocada pela abstinência e a controlar os gatilhos que geram a ânsia pelo jogo. 

“Primeiro, fiquei sem jogar por quatro meses, mas por conta da pandemia e da necessidade de ficar dentro de casa, me desmotivei e acabei tendo uma recaída. Fiquei entre idas e vindas. Mas agora faz oito meses que estou sem jogar, estou bem mais tranquilo e conseguindo lidar com as coisas de maneira muito melhor; controlar meu tempo e minhas emoções”, comemora.

Qualquer semelhança com o estilo da AA, os Alcoólicos Anônimos, não é mera coincidência. Com o nome de Computer Gaming Addicts Anonymous (CGAA) — Adictos em Jogos Eletrônicos Anônimos —, a terapia contempla duas reuniões semanais que, por enquanto, ocorrem por Zoom. A expectativa é que até o final do ano ocorra a primeira reunião presencial, começando pelo Rio de Janeiro. Um braço recém-criado pelo CGAA no Brasil é uma segunda organização, só com familiares de pessoas com dependência em jogos eletrônicos para compartilharem seus dramas.  

Esse formato de tratamento começou a ser desenhado em 2004, quando um grupo de jogadores eletrônicos americanos começou a compartilhar em um fórum online os prejuízos que os jogos estavam causando em suas vidas. Durante dez anos eles foram se organizando e percebendo que a ajuda mútua fazia bem para os membros. Em 2014, decidiram que adaptariam os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos, que têm como base primordial reconhecer a impotência diante do vício e observar os prejuízos causados por ele. Hoje, o grupo conta com centenas de pessoas de várias partes do mundo, com reuniões online acontecendo em inglês, espanhol, alemão e russo e, agora, em português. Por enquanto, os encontros presenciais estão limitados a algumas cidades americanas.

A psicóloga Elizabeth Carneiro, que estuda o Perfil de Jogador Patológico Brasileiro, na Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, e é diretora da Clínica Espaço Clif, considera que os grupos de ajuda mútua são uma boa alternativa para quem se percebe dependente dos jogos, assim como para a família ao redor.  

“Estes grupos mostram que as pessoas que sofrem de algum tipo de dependência não estão sozinhas, não são as únicas. E as reuniões voltadas para as famílias conseguem ainda orientar os parentes sobre quais tipos de comportamento são normais e quais são patológicos”, explica.  

Questão de saúde  

Chamada de gaming disorder, a dependência de jogos eletrônicos é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. A condição entrou no CID 11 (11ª edição da Classificação Internacional de Doenças, que padroniza a caracterização e notificação de doenças em todo o mundo) em 2018 e será formalizada a partir de 1º de janeiro de 2022.

Nem sempre o tempo em si dispendido em frente ao computador ou celular é sinalizador de se tratar de um vício. O problema se estabelece quando o hábito atropela compromissos importantes e a convivência com amigos próximos. Ou então, quando interfere em questões de saúde, como o sono, as refeições e a higiene pessoal.

O problema é definido como um padrão de comportamento caracterizado pela perda de controle sobre o tempo de jogo, sobre a prioridade dada aos jogos, em detrimento de outras atividades importantes, e continuação ou aumento do tempo de jogo apesar das consequências negativas associadas a ele. O diagnóstico é dado quando os prejuízos afetam de forma significativa as áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais, ocupacionais ou outras áreas importantes ao longo de cerca de 12 meses.  

O perfil do dependente 

O número de pessoas que jogam games eletrônicos estimado pela Entertainment Software Association, associação comercial da indústria de videogames, nos Estados Unidos, é gigante: cerca de 2,6 bilhões em todo mundo. Estudo feito pela Associação Americana de Psiquiatria mostra que cerca de 1% da população mundial sofre com o vício em jogos eletrônicos. O número de dependentes é enorme, portanto: aproximadamente 80 milhões. Não há estimativa oficial no Brasil, mas sabe-se que o número é alto. A incidência maior é nos  países asiáticos.

O perfil de quem sofre de dependência em jogos eletrônicos costuma ser de pessoas do sexo masculino e de classe média (por ter acesso a aparelhos eletrônicos). Normalmente, o interesse pelos games começa na adolescência. Pessoas que apresentam quadros de depressão e baixa autoestima, que tenham uma visão diminuída em relação a si mesmos, estão mais vulneráveis à dependência, já que enquanto jogam eles se sentem bons em alguma coisa.

“Os jogos são capazes de ativar em nosso cérebro mecanismos de recompensa muito rápidos. Por exemplo, eles costumam ter fases. À medida que você consegue ter um brilhantismo em uma etapa e você a conclui, é como se o jogo dissesse que você é incrível, que você é campeão”, afirma Carneiro.  

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