Investigações da Polícia Federal sobre apologia ao nazismo crescem 59% em 2020

Homem tinha suástica na piscina de casa, em Santa Catarina (Reprodução)

Com informações do InfoGlobo

RIO DE JANEIRO – O número de inquéritos abertos pela Polícia Federal para investigar casos de apologia ao nazismo disparou em 2020, na comparação com a série histórica da última década. Dados obtidos pelo GLOBO, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que, depois de já registrar alta significativa, passando de 20, em 2018, para 69 registros em 2019, as apurações contabilizadas pela PF somaram 110 no ano passado, o que representa um crescimento de 59% e uma média de um inquérito aberto a cada três dias.

Entre 2010 e 2018, a média de inquéritos abertos foi de apenas 13 por ano. Somente nos primeiros cinco meses de 2021, já foram registradas 36 apurações, o que indica que o patamar deve se manter elevado este ano. Os dados não incluem os Estados de Mato Grosso do Sul, Rondônia e Tocantins, que não constam da planilha enviada pela PF.

O número cresceu de modo significativo especialmente no Sudeste do país, com destaque para os Estados de São Paulo e do Rio. Em 2010, foram abertos 27 casos no maior Estado do País, e 23 no Rio, número acima da média dos anos anteriores. Em terceiro, aparece o Rio Grande do Sul, com 11 inquéritos.

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- Foto: Editoria de Arte
(Editoria de Arte/O Globo)

A legislação brasileira estabelece que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. O artigo aborda discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

O GLOBO procurou a PF para obter mais detalhes sobre os casos, mas não houve resposta. Uma vez concluída a apuração, cabe ao Ministério Público Federal (MPF) apresentar ou não uma denúncia. O órgão também não informou quantas denúncias foram apresentadas.

Exaltação em rede social

Um dos casos mais recentes de um investigado que virou réu por incitação ao nazismo foi registrado em São Paulo no fim de junho. O acusado utilizou, em 2015, uma página criada na rede social russa VK para compartilhar imagens que remetem a ideologias nacionalistas e uma foto na qual nove pessoas aparecem com os rostos cobertos por emojis, em referência a Adolf Hitler. As autoridades identificaram o réu a partir de ações de cooperação policial entre o Brasil e a Rússia. O MPF e a PF obtiveram dados de IP do usuário e a confirmação do número de celular que ele usou para se cadastrar na plataforma.

Na semana passada, a PF fez uma operação em São José do Rio Preto (SP). Foram cumpridos mandados de busca e apreensão em uma apuração sobre crimes de discriminação, preconceito e divulgação do nazismo. A investigação foi instaurada após a identificação de um perfil em uma rede social de um jovem de 21 anos que exibia a cruz suástica ou gamada, declarava apoio ao nazismo e fazia comentários discriminatórios contra judeus, católicos, nordestinos, negros e homossexuais.

Em junho, um jovem de 17 anos foi expulso de um shopping em Caruaru (PE) por usar uma suástica no braço — o caso foi encaminhado ao Ministério Público de Pernambuco. Em Florianópolis, um homem foi flagrado em maio balançando uma bandeira nazista na sacada de um apartamento. O inquérito foi encaminhado ao Judiciário pela Polícia Civil de Santa Catarina, sem indiciamentos. Ao portal G1, a delegada responsável afirmou que o ato flagrado não se encaixa no que consta da lei por não se enquadrar nas quatro possibilidades previstas no texto: “Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos”.

Homem foi preso em shopping de Caruaru (PE) porque estava com uma suástica na roupa Foto: Reprocução
Homem foi preso em shopping de Caruaru (PE) porque estava com uma suástica na roupa (Reprodução)

Há dois meses, o Ministério Público de Santa Catarina se manifestou pelo arquivamento do procedimento instaurado para apurar um dos casos de maior repercussão no país envolvendo símbolos nazistas. A medida foi tomada após o professor Wandercy Antonio Pugliesi, que decorou o fundo da piscina da casa com uma suástica nazista, comprovar que já o havia descaracterizado. O caso veio à tona em 2014 e, em 2016, um processo na área criminal já havia sido arquivado após o MP considerar que Pugliesi não fazia propaganda nazista ao manter o símbolo dentro de casa.

Para pesquisadores, o contexto do governo do presidente Jair Bolsonaro, em que já houve episódios de referências ao nazismo e ao supremacismo branco, é um dos elementos que ajudam a explicar o aumento no número de casos em investigação, já que a exposição pode encorajar esse tipo de manifestação.

O historiador Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora, coautor do livro “O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo”, avalia que o crescimento pode ter relação não apenas com a intensificação de grupos que fazem apologia ao nazismo, mas também como um reflexo da reação dos movimentos antifascistas, que mapeiam ações do tipo no país. Outro aspecto citado é o contexto político marcado pela ascensão do bolsonarismo.

“Uma narrativa de extrema-direita auxilia a naturalizar aspectos e discursos próprios de nichos de grupos supremacistas brancos e mesmo daqueles que possuem alguma forma de filiação neonazista. Algumas simbologias que são repetidas cotidianamente por membros do governo Bolsonaro acabam sendo um elemento de combustão, de certa legitimidade no campo político”, afirma Neto.

Referência a Goebbels

Em um episódio emblemático, o então secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, copiou uma citação do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, em um pronunciamento no ano passado. Em março, Filipe Martins, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, fez um gesto associado a supremacistas brancos durante uma sessão no Senado — ele nega a intenção.

Há duas semanas, Bolsonaro se tornou alvo de críticas após se reunir com a deputada alemã Beatrix von Storch, vice-presidente do partido AfD (Alternativa para a Alemanha), de extrema-direita, e neta de Lutz Graf Schwerin von Krosigk, ministro das Finanças de Adolf Hitler.

O historiador René Gertz, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em nazismo, diz que não só o Brasil, mas diversos países estão mais propensos à emergência de movimentos neonazistas. Essas narrativas ganham força, ressalta, num momento em que os referenciais da sociedade são menos fixos, como a própria noção de família ou o funcionamento das instituições, e elas buscam oferecer explicações e interpretações para preencher essa instabilidade.

“Basta olhar para a eleição de (Donald) Trump, para os governos populistas da Europa Oriental. No Brasil, com a vitória de Bolsonaro, é de se esperar que esses casos aumentem, porque temos um governo que traz elementos fascistas e que acabam tendo capilaridade em segmentos da sociedade”, diz Gertz.

O presidente da Federação Israelita do Estado do Rio (Fierj), Alberto David Klein, também vê um movimento mundial de alta nos casos de discriminação. No ano passado, a federação colocou no ar um disque-denúncia para monitorar episódios de apologia ao nazismo no Estado e encaminhá-los às autoridades. Desde então, tem recebido denúncias constantemente. No mês passado, a Fierj conseguiu no Tribunal de Justiça do Rio uma liminar para impedir o leilão virtual de um quadro contendo símbolos e ornamentos nazistas.

“Estamos tentando ao máximo combater a banalização do nazismo, do holocausto. A banalização faz com as pessoas se sintam à vontade para usar esse símbolos”, afirma Klein.

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