Jovem alega sofrer transfobia em veículo de comunicação em Manaus; veja o vídeo e o desabafo da influencer

Em um vídeo publicado na rede social da própria Ariana, é possível ver quando um dos funcionários discute com a modelo (Reprodução/Instagram)

Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS – A DJ e modelo trans manauara, Ariana Paes, de 24 anos, passou por cenas de LGBTfobia na noite dessa quarta-feira, 9. Durante uma reunião em uma emissora de TV da capital amazonense, um dos funcionários do local pedia que a Ariana, uma mulher trans, não mais utilizasse o banheiro feminino, alegando que só utilizaria o ambiente após apresentar uma carteira de identidade comprovando o nome social.

Em um vídeo publicado na rede social da própria Ariana, logo após a discussão, é possível ver quando um dos funcionários discute com a modelo, que, inclusive, alega ter sido mandada embora na frente dos convidados que aguardavam para participar do programa, na qual a modelo era apresentadora, à convite da TV.

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“Ao chegar lá, fui comunicada pelo produtor que tanto as convidadas quanto eu não poderíamos mais usar o banheiro feminino, e que a empresa teria entrado em consenso de que não poderíamos mais ter acesso. Na hora até concordei que, os meninos que são gays, não usassem o banheiro, mas, no meu caso, não aceitei. Eu sou uma mulher trans. Isso é transfobia. Foi quando o gerente chegou e começou a me questionar e gritar comigo falando que não mando lá e quem faz as regras são eles”, contou Ariana.

Questão divergente

De acordo com o advogado e especialista em direitos humanos, Maycon Abrantes Lima, o Brasil ainda é muito confuso quando o assunto é lei voltada para as questões LGBTQIA+. Segundo o especialista, não existe qualquer instrumento normativo que traga obrigação, sendo esse requerimento um abuso do empregador que, na capacidade de suas regras internas, jamais poderá esbarrar nos princípios legais constitucionais.

“O uso de banheiros por pessoas trans é uma situação que ainda não possui um sistema legal consolidado, dando o direito ou não à esse grupo, de forma explícita. Alguns tribunais do Brasil têm julgado de formas diferentes o mesmo caso. Já o STF tem alguns precedentes favoráveis à permissão do uso sem qualquer tipo de limitação”, conta o advogado.

Mas a situação, para o especialista em direitos humanos, vai além. Maycon explica que, mesmo não existindo uma lei específica, o STF entende que a dignidade da pessoa humana e a questão da proteção da honra ao indivíduo não permite que a pessoa seja constrangida pela questão de identidade de gênero.

“Por isso se aplicariam as normas como elas já estão estabelecidas em uma extensão e como já existem algumas prerrogativas, falando sobre o uso de banheiro para funcionários e, algumas outras portarias também não teriam como impedir que essas normas se aplicassem de forma igual às pessoas trans, pois esbarraria contra a dignidade da pessoa humana. Infelizmente não tem uma lei afirmando isso. Fica pelo entendimento de alguns ministros, assim também como alguns juízes de alguns tribunais tem entendimento diferente”, ressalta Maycon.

É Transfobia?

Entre divergências, o especialista deixa claro que a situação pode sim ser caracterizada como transfobia, uma vez que o funcionário não demonstrou se importar com a dignidade e sim com o aspecto formal, dificultando aparentemente de forma proposital.

“Vendo o vídeo, nota-se que ele exige o documento da moça, ou seja, ele se importou mais com o documento construindo muros e barreiras. Então, se ela tivesse com o documento, poderia usar o banheiro? Eles não estão questionando o fato de ela ser ou não trans. Estão ligados ao documento, sendo que a discussão que acontece hoje no Brasil é justamente sobre o uso do banheiro e não sobre apresentação de um RG, mas sim se ela pode ou não utilizar o local pelo qual ela se identifica pelo gênero ou pela forma biológica”, explica.

(Reprodução/Instagram)

Violência contra a subjetividade

De acordo com o psicólogo e ativista em causas sociais e LGBTQIA+ Adan Silva, a situação em que Ariana foi colocada remete à violência emocional que começa justamente nessas ações de institucionalização da transfobia, podendo resultar até mesmo em morte para algumas vítimas.

O especialista explica que, em muitas casos, além do constrangimento que já pode dar um start para um desequilíbrio emocional, há grandes chances de acontecer também um processo de somatização, onde a pessoa exposta não consegue elaborar situações extremamente dolorosas, e acabam se expressando no corpo de uma maneira não muito “inteligente” do psiquismo tentar se proteger, como foi o caso de Ariana.

“Eu cheguei em casa tão mal que só aliviou quando vomitei. Eu não sei bem descrever, mas é uma sensação horrível”, declarou a trans.

Adan considera que pessoas da comunidade LGBT, em especial as trans, tendem a sofrer no processo de socialização praticamente durante toda a vida. Ele avalia que, episódios como estes são desencadeados por conta do binarismo (homem X mulher). E iniciativas que impeçam um simples uso do banheiro, por exemplo, implicam no processo de reafirmação de identidade de gênero do indivíduo.

“Uma veradeira violência contra a subjetividade, pois mais uma vez caímos no binarismo de gênero, onde não se entende que uma pessoa trans pode se compreender mulher (no caso da Ariana) por conta desse reducionismo biológico do cromossomo de (XX, XY) pênis e vagina, e quem não se entende nesse processo de binarismo tende a sofrer, infelizmente”, explica o psicólogo.

Ariana é conhecida no meio LGBTQIA+ manauara (Reprodução/Instagram)

Gatilhos

O psicólogo alerta para os gatilhos que estas e outras situações podem ocasionar em pessoas trans. Segundo Adan, além da dura realidade enfrentada na vida adulta, a carga acumulada desde a infância por essas pessoas também contribui para males como ansiedade, insônia, insegurança e mania de perseguição.

“Na verdade, situações assim costumam acompanhar pessoas trans desde a infância, então, ao mesmo tempo que são desencadeadoras desse tipo de resposta, elas, durante a vida, servem como gatilhos que relembram circunstâncias vindo até com mais intensidade”, pontua Adan.

Ele ressalta também para os bloqueios e traumas. “Ainda tem os bloqueios, tendo em vista que cada pessoa reage de uma forma e pode também utilizar o mecanismo de fulga e se isolar, não aceitar convites e ter a vida social prejudicada evitando contato com pessoas para evitar o preconceito”, ressalta.

Posicionamento

Sobre o ocorrido, o diretor-executivo da TV Maskate, Miguel Jorge Mourão, em declaração exclusiva para CENARIUM, assumiu que houve uma atitude preconceituosa por parte do prestador de serviços da empresa e alegou que não compactua com nenhum tipo de discriminação, uma vez que a empresa é conhecida por abraçar as minorias e que sempre levantou a bandeira LGBTQIA+, abrindo espaço com matérias, entrevistas e programas com a presença da comunidade.

Quando questionado por não ter tomado uma medida mais severa para com o prestador de serviço, o diretor disse que a empresa está estudando qual a melhor forma de agir.

“O Maskate não compactua com essa situação, foi algo isolado. Sempre tratei todos muito bem, porém, não tinha contato com a Ariana. O que houve foi um pedido para ela e, principalmente, os colegas e o namorado dela não entrarem no banheiro, porque algumas funcionárias já haviam reclamado que, além dela, entravam também outros homens, que não eram trans. Por mim, ela usava o banheiro normalmente”, declara o diretor, que também alegou a insatisfação da modelo por ter sido comunicada antes que o programa iria acabar por falta de patrocínio.

“Pelo que me foi passado, ela já tava chateada pelo fim do programa, foi quando pediu para ir ao banheiro e foi comunicada que não usaria o banheiro feminino, aí começou a confusão. Fui chamado, conversei com ela, ela pediu a ajuda de custo dela e acertei tudo e depois disso não houve entendimento e ela foi embora. Estamos esperando chegar a notificação judicial”, finalizou Mourão.

Rebate

Procurada pela reportagem, Ariana negou que tenha sido comunicada sobre qualquer encerramento do programa e afirmou que entrou com a medidas cabíveis contra a empresa.

“Nunca houve um comunicado formal ou informal de que o programa iria acabar. Aconteceu tudo muito rápido. Eu nem tive em momento algum um embate com qualquer pessoa que seja de lá. Já falei com meus advogados e fiz queixa também, não vou me calar, vou denunciar sim, pois quando eles queriam que eu divulgasse o programa deles, porque eles estavam abrindo espaço para o público travesti e trans, eles souberam levantar nossa bandeira, mas quando a realidade bate é outra história. Eles queriam era Pink Money”, desabafa.

Como proceder?

De acordo com as orientações do advogado, o primeiro passo é armazenar em documentos, fotos, vídeos ou áudios para comprovar o acontecido. O segundo passo é acionar o Ministério Público do Trabalho (caso seja empregado da empresa) com uma denúncia contra o lugar por descumprir o aspecto de dignidade e do trabalhador.

“Logo após, ela pode procurar o Tribunal do Trabalho pedindo uma indenização por toda essa situação vexatória que ela foi acometida. Não sendo funcionária do local, ela pode ainda acionar o Ministério Público e procurar o Tribunal de Justiça, porém, não o do trabalho e pedir a indenização também”, pontua o advogado.

Ainda caso não haja relação de trabalho, o procedimento a ser feito pelas vítimas de homotransfobia em posse de provas ou testemunhas e que queiram relatar alguma discriminação sofrida é procurar a Deops, na Delegacia-Geral de Polícia Civil, localizada na avenida Pedro Teixeira, bairro Dom Pedro, zona Centro-Oeste da capital. A unidade funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, ou a delegacia mais próxima da residência.

No Amazonas, desde fevereiro de 2020, transexuais e travestis podem registrar boletins de ocorrência com os nomes sociais. A pena para crimes de homofobia (a transfobia está incluída) é a mesma do racismo, segundo o Supremo Tribunal Federal que, em 13 de junho de 2019, passou a criminalizar os crimes de LGBTfobia.

Desde então, o Brasil se tornou o 43º País a criminalizar a prática preconceituosa que, pune com três a cinco anos de prisão para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” por conta da orientação sexual.

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