Licença prévia para obras da BR-319 segue suspensa mesmo com decisão do TCU
Por: Ana Cláudia Leocádio
01 de setembro de 2025
BRASÍLIA (DF) – A Licença Prévia (LP) concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para as obras do Trecho do Meio da BR-319, que liga Manaus-AM a Porto Velho-RO, segue suspensa por decisão judicial, independente do que decidiu o Tribunal de Contas da União (TCU), na última quarta-feira, 27, que manteve válido o licenciamento concedido em 2022. A informação é da especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), Suely Vaz, organização que obteve uma liminar de suspensão da LP, na 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas, em julho de 2024, e que foi confirmada pelo Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1), em julho deste ano.
De acordo com Vaz, não há como uma decisão, que analisa a validade de um ato administrativo público colidir com uma decisão judicial. “O relator não acatou a proposta sustentada pela própria equipe técnica do TCU, mas ele mesmo reconhece que o que vale é a decisão judicial”, afirmou.
Em sessão plenária na quarta-feira passada, 27, o plenário do TCU aprovou, por unanimidade, o voto do ministro Walton Alencar Rodrigues, relator da representação 026.533/2024-3, apresentada pela Unidade de Auditoria Especializada em Agricultura, Meio ambiente e Desenvolvimento Sustentável (AudSustentabilidade), acerca de possíveis irregularidades na concessão de licença prévia para as obras de pavimentação do Trecho do Meio. Os auditores pediam a anulação da licença, o que foi negado pelo relator.

O Acórdão 1966/2025, publicado nesta segunda-feira, 1º, com o teor da decisão, mostra que a representação da equipe técnica do Tribunal argumentou que a LP 672, concedida no dia 30 de julho de 2022, foi emitida contrariando o que estabelece o art. 8º, inciso I, da Resolução Conama 237/1997. Isto porque, desde 2019, em monitoramento realizado pelo TCU a pedido do Congresso Nacional, o Ibama informara que a governança ambiental na área de influência da rodovia é necessária para a viabilidade ambiental, mas admitiu que esse instrumento não estaria garantido.
“Os mesmos pareceres técnicos do Ibama que apontam que a pavimentação do trecho do meio da BR-319 somente teria viabilidade ambiental em um cenário de forte governança ambiental, em razão dos graves riscos que o empreendimento suscita, demonstram que a necessária governança para coibir a prática de ilícitos ambientais está longe de ser alcançada. Ainda assim, o Instituto concedeu a licença prévia para a pavimentação do trecho do meio da BR-319”, diz trecho do Acórdão.
Para Suely Vaz, o posicionamento da equipe técnica do TCU está de acordo com o que propõe a Ação Civil Pública (ACP), movida pelo Observatório do Clima na Justiça Federal do Amazonas, que conseguiu suspender os efeitos da licença prévia do empreendimento. O pedido é para que os instrumentos de governança, principalmente contra o desmatamento, sejam implantados antes da concessão da licença prévia, e não durante o processo de licenciamento, que tem ainda as licenças de Instalação (LI) e de Operação (LO).
“Essas medidas de governança têm que estar implementadas porque senão, você faz uma avaliação ambiental estratégica e fala, precisa de XYZ, só que você não tem dinheiro e isso nunca vai ser implantado. Não basta o planejamento. Nós temos um precedente na BR-163, no Pará, porque foi feito o ‘Plano 163 Sustentável’. Só que é uma área com muitos problemas, muito desmatamento até hoje. Então, não basta o planejamento. Tudo isso tem que ser implementado para que esse asfaltamento seja viável”, argumentou a especialista. Ela alerta, porém, que uma avaliação ambiental estratégica é para tomar a decisão e não para basear uma decisão já tomada.
O Trecho do Meio da BR-319 está localizado todo no Estado do Amazonas, entre os quilômetros 250 e 655,7. O parecer técnico da AudSustentabilidade cita um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para contextualizar os riscos da pavimentação da rodovia, que estima um acumulado de desmatamento da Amazônia da ordem de 170 mil KM2, área equivalente à soma dos territórios dos Estados do Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Alagoas.
Decisão do relator
Em seu voto, o ministro Walton Alencar acatou parcialmente o pedido da equipe técnica do TCU, mantendo a licença e determinou o apensamento da representação ao processo de monitoramento em curso no TCU, desde 2022, para que “as medidas relativas ao licenciamento ambiental da BR-319 sejam acompanhadas de forma integrada, com vistas a assegurar a observância dos princípios da legalidade, da precaução e da sustentabilidade”.
“Adicionalmente, recomendo ao Ibama e ao Dnit que, para as próximas licenças de futuros empreendimentos na região, intensifiquem seus esforços para implementar as medidas de governança ambiental, fortalecendo a presença do Estado e garantindo os princípios da precaução e do desenvolvimento sustentável”, concluiu o relator, que foi acompanhado por todos os colegas.
Para negar a suspensão, Alencar considerou que a licença prévia não autoriza o início das obras, mas, sim, estabelece condicionantes a serem cumpridas antes da emissão da Licença de Instalação (LI), esta sim que autoriza o início dos trabalhos.
“Ademais, a rodovia BR-319 já esteve asfaltada no passado, sendo um eixo de integração regional de grande importância para o desenvolvimento local. A pavimentação do trecho do meio, objeto da licença em questão, é essencial para a melhoria das condições de trafegabilidade e para a promoção de benefícios socioeconômicos à população da região. A interrupção do processo de licenciamento, por meio do cancelamento da licença prévia, poderia comprometer os esforços em andamento para a construção de uma governança ambiental robusta e integrada”, afirma em seu voto.
O relator também ressaltou que, “considerando que o Poder Judiciário já analisa a legalidade da Licença Prévia em tela, não se mostra oportuno que o TCU emita decisão definitiva sobre o mesmo objeto, pois poderia resultar em sobreposição de entendimentos e insegurança jurídica”.
Outro ponto relatado no voto é publicação da Lei 15.190/2025, que alterou o arcabouço normativo do licenciamento ambiental, mantendo as três fases tradicionais (Licenças Prévia, de Instalação e de Operação), mas fixando prazos máximos, permitindo modalidades mais céleres, como o licenciamento unificado (LP+LI), e impondo que processos em curso se adaptem às novas regras a partir das etapas posteriores.
Dificuldades de compromissos
O Acórdão da decisão do TCU traz um histórico da dificuldade encontrada para implementar essa governança na região de influência da BR-319, que está localizada numa das áreas mais preservadas da Amazônia. Mostra também a necessidade de uma ação interinstitucional dos entes federados, que devem firmar compromissos para viabilizar o empreendimento.
Uma das dificuldades, segundo o Acórdão, seria cobrar do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), braço executivo do Ministério dos Transportes (MT), o cumprimento das responsabilidades pela implementação da governança, papel que foge da competência institucional da autarquia federal. O próprio Ministério dos Transportes, em relatório de viabilidade da rodovia, divulgado em junho de 2024, alerta que somente uma ação integrada entre todos os entes federados e a ação entre 11 ministérios, poderá assegurar a governança ambiental da estrada.
No último dia 20 de agosto, o governo federal deu um passo adiante na busca dessa integração entre os ministérios em favor da pavimentação da BR-319, ao criar dois novos colegiados, responsáveis pela coordenação e implementação do Plano de Ação para o Fortalecimento da Gestão Socioambiental no trecho amazonense da rodovia. Esse debate sobre a BR-319/AM será conduzido por representantes de sete órgãos do Poder Executivo, sob coordenação da Casa Civil. Os grupos têm como meta compreender medidas emergenciais no entorno da rodovia, abrangendo um raio de 50 quilômetros para cada lado da BR.
Além da Casa Civil e do Ministério dos Transportes, o colegiado será formado pelos ministérios da Defesa, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, da Justiça e Segurança Pública, do Meio Ambiente e Mudança do Clima e dos Povos Indígenas.
A equipe técnica do TCU lembra na representação que, desde 2009, foram feitas diversas tentativas para se chegar a um denominar comum no cumprimento das condicionantes ambientais, que assegurassem a governança da rodovia e seu licenciamento, e que seguem sem solução até hoje.
Mudança de mentalidade
A repavimentação da BR-319 é uma bandeira que une todos os espectros políticos no Amazonas, que reclamam de Manaus ser a única capital do país isolado geograficamente, sem acesso ao restante do país pelo modal rodoviário, o que traz diversos atrasos para o desenvolvimento da região, que tem ainda os estados de Roraima e Rondônia prejudicados. Eles também colocam como vilãs nesse processo as organizações não governamentais (ONGs) e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.
A especialista do Observatório do Clima (OC), Suely Vaz, afirma que a organização nunca defendeu que a estrada jamais seja asfaltada e sim que os processos de licenciamento respeitem a legislação e que levem em conta as particularidades da região e a política de governança. Monitoramento do OC feito há quase dez anos mostram que 46% das emissões dos gases do efeito estufa são provenientes de desmatamento, a maior parte na Amazônia.
Para ela, esses ataques e pressões políticas em torno de alguns não resolvem o problema. “Mostra uma visão à moda antiga, olhando para o século passado, vamos dizer assim, que desconsidera e privilegiam o modelo de ocupação na Amazônia, baseado em grandes obras de infraestrutura. Isso já mostrou que tem problemas. A gente precisa de um plano de desenvolvimento regional para a Amazônia, que pressupõe a floresta em pé, que traga renda para a população”, defendeu.
O modelo de grandes obras de infraestrutura, sustentou Vaz, até hoje não trouxe riqueza e justiça social para as populações da região. “Muito pelo contrário, é a macrorregião do país com pior IDH e também a macrorregião do país com maior número de mortes violentas, e o Fórum Nacional de Segurança Pública mostra isso”, argumentou.