Lideranças indígenas estão sob ataque em grupos de WhatsApp

Milena Mura, liderança do povo Mura (Amazonas), em primeiro plano, durante manifestação indígena - Arquivo pessoal

Com informações da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO – Embaixo de uma das tendas instaladas em Brasília, no maior acampamento indígena da história da democracia brasileira, em setembro de 2021, o cacique Agnelo Xavante, de 52 anos, da Terra Indígena Etewawe (MT), assumiu o microfone e, por um momento, parou a mobilização.

Visivelmente consternado, o líder pediu a atenção dos quase 6.000 indígenas presentes. Ele precisava desmentir um vídeo compartilhado em grupos de WhatsApp que prejudicava todos ali.

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A postagem tinha alcançado grupos indígenas de todo o País no aplicativo, disse Agnelo. Mas não só. O conteúdo já circulava em outros grupos públicos no Amazonas no WhatsApp, cujos interesses vão de política à religião, monitorados desde agosto pelo projeto Amazonas – Mentira tem Preço, do InfoAmazonia e da produtora Fala.

“O vídeo chegou em muitos grupos de WhatsApp. Aquilo doeu na gente. Você sabe o que são 320 aldeias xavantes irritadas? Isso nunca tinha acontecido. Eu, guerreiro do povo Xavante, não podia ouvir e ficar calado”, lembra.

Agnelo disparou um novo vídeo em suas redes de contato, desmentindo o anterior, que acusava, sem provas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) de usar recursos do acampamento para outros fins.

A mobilização aconteceu durante a apreciação do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), uma tese jurídica que defende que indígenas só têm direito à terra se nela estivessem em 1988.

“A demarcação de terras indígenas não interessa a muitos, por isso gravam esses vídeos mentirosos. Nosso confronto e a nossa divisão é tudo o que eles querem”, diz Agnelo. O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, que queria mais tempo para analisar o caso.

Enquanto Agnelo gravava o vídeo, a cacica Eronilde Fermin Omágua, do povo Kambeba de São Paulo de Olivença (AM), que também estava na mobilização nacional, precisou se defender de mensagens de ódio compartilhadas pelas redes.

“Uma pessoa jogou dois áudios contra mim num grupo de WhatsApp que possui mais de 300 mulheres do Amazonas, dizendo que eu não estava lutando pelos direitos coletivos, que não era comprometida com a causa e que não representava o meu povo”, recorda.

“Deixei de ser vista como uma lutadora e virei uma vilã. Sou atacada dia e noite e isso já adoeceu minha família”. Eronilde diz não conhecer a mulher indígena que a acusou.

Quem não estava em Brasília também foi alvo de ataques. Enquanto Milena Mura, liderança do povo Mura (Amazonas), e outras 400 pessoas, de 17 comunidades, protestavam contra a tese do marco temporal na rodovia estadual M254, que liga Manaus a Porto Velho, histórias distorcidas foram compartilhadas.

“Começaram a espalhar que estávamos em busca de briga política, que queríamos causar arruaça e que estávamos prejudicando o comércio e a saúde, por causa da pandemia de Covid-19”, diz.

“Com isso, até mesmo outras aldeias começaram a atacar nossa organização, questionando os objetivos do nosso movimento.”

Segundo Milena, o Conselho Indígena Mura teve de convocar uma reunião extraordinária e reunir lideranças de 34 aldeias para desmentir as notícias falsas.

Para Denise Dora, diretora-executiva da organização Artigo 19 no Brasil e na América do Sul, “a desinformação é uma estratégia”.

Nos onze grupos públicos do Amazonas monitorados pela reportagem, histórias atacando a mobilização contra a tese do marco temporal também foram compartilhadas. Uma delas, por exemplo, creditava genericamente os protestos a ONGs e partidos de esquerda.

Leda Gitahy, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das coordenadoras do Grupo de Estudo da Desinformação em Redes Sociais, diz que existe um ecossistema que cuidadosamente organiza estratégias de desinformação e de propaganda política para dividir as comunidades.

“O problema é o mesmo no país inteiro. A lógica que está por trás disso é soltar mensagens de difusão rápida e articulada para causar confusão e dúvida”, afirma.

“A estratégia das mentiras compartilhadas em grupos de WhatsApp é fazer os indígenas brigarem dentro do seu povo para desestruturar o movimento.”

Relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Apib destacam que 2020 ficou marcado pelo alto número de mortes de indígenas ocorridas em decorrência da má gestão do enfrentamento à pandemia no Brasil, pautada pela desinformação e pela negligência do governo.

“O governo federal é o principal agente transmissor do vírus entre os povos indígenas”, diz o documento da Apib.

“As fake news diziam que a vacina era do diabo, que vem com um chip implantado, de um tudo que era para que as pessoas não tomassem. E tivemos resistência dentro do território: em uma calha [área no rio] onde há mais de mil pessoas só 160 quiseram tomar a vacina naquele momento”, contou o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), no Amazonas, Marivaldo Baré.

Segundo ele, o governo federal não promoveu nenhuma campanha de informação sobre a vacina para combater a estratégia de desinformação que atingiu as aldeias do Alto Rio Negro. Pelo contrário, a descrença pública do presidente sobre as vacinas ajudou a piorar a situação.

“Tivemos que trabalhar muito para produzir, por nossa conta, áudios e cartilhas falando sobre a importância da vacinação e da prevenção para evitar contaminação.”

O Ministério da Saúde foi procurado, via assessoria de imprensa, para comentar os aspectos mencionados pela Apib e pela Foirn, mas não se manifestou até a publicação da reportagem.

A auxiliar de enfermagem indígena Vanda Ortega Witoto foi vítima de difamação e racismo em grupos públicos de WhatsApp e nas redes sociais após ser a primeira pessoa do Amazonas a ser vacinada contra a Covid, em janeiro de 2021.

“Diziam que eu era uma ‘índia fake’ por não vestir roupas tradicionais e por morar na cidade e não na aldeia. Diziam que deveriam vacinar índios de verdade e não eu”, conta. “Passei a receber inúmeras mensagens de ódio, foi horrível.”

Os conteúdos falsos, afirma Francesc Comelles, coordenador regional do Cimi, começaram a ter um impacto maior nas comunidades indígenas à medida que o acesso à internet chegou dentro dos territórios.

Se por um lado a tecnologia conectou lideranças e permitiu que denunciassem violações com agilidade, por outro expôs todos às fake news.

“Essa mistura de informação verdadeira com informação distorcida e mal-intencionada foi potencializada com as fake news em torno da pandemia, o que teve um impacto direto na saúde dos indígenas”, afirma.

Quem é alvo de conteúdos inverídicos distribuídos pelas mídias sociais deve buscar suporte. Segundo Denise Dora, a busca de ajuda deve ser feita sempre por meio da organização indígena majoritária da região ou da Defensoria Pública da União, do Ministério Público Federal e das organizações da sociedade civil. “É preciso buscar ajuda para reverter. E existem mecanismos para isso”, afirma.

Em nota, a Coiab afirmou que os indígenas vítimas de mentiras devem avaliar se o alcance da ação pode causar um mal injusto e dano direto a sua pessoa.

Em caso positivo, devem procurar a autoridade policial e “a sua organização regional com a finalidade de dar publicidade sobre o acontecido e buscar suporte.”

Procurada para comentar sobre ações de suporte aos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai) disse que “em vez de trabalhar com assertivas falsas, tem atuado, efetivamente, com medidas práticas de apoio à população indígena, a exemplo do investimento de cerca de R$ 34 milhões em ações de fiscalização em Terras Indígenas de todo o país em 2021”.

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