Livro com ‘ensaios-reportagens’ de Cecília Meireles mostra poetisa atenta e preocupada com seu tempo

Cecília Meireles, em 1952 (Foto: Arquivo O Globo / Agência O Globo)

Com informações do O Globo

SÃO PAULO — Perguntada certa vez sobre o seu maior defeito, Cecília Meireles respondeu: “Uma certa ausência de mundo”. Mas, se em sua poesia ela se notabilizou por sua natureza aérea (a própria se definiu como “pastora de nuvens” no poema “Destino”), a sua prosa comprova que ela também sabia manter os pés no chão. O recém-lançado “Um país no horizonte de Cecília” (Global Editora) revela a inusitada faceta repórter de uma autora atenta e preocupada com o mundo que a cerca.

A edição reúne nove “ensaios-reportagens” produzidos entre 1939 e 1940, todos inéditos em livro. A poeta pega seu bloco de notas e vai a campo entender os modos de produção e as engrenagens econômicas da sociedade (os textos foram publicados originalmente na revista “O Observador Econômico e Financeiro”, dedicada a pesquisas quantitativas). Batendo de porta em porta, entrevistando fontes, analisando números, Cecília explica de forma bem mastigada os universos mais variados, da indústria da carne à presença da mulher no mercado de trabalho, passando pela venda de antiguidades e a economia da moda.

“Está claro que ela não era nada fora do mundo, pelo contrário”, diz o editor Gustavo Henrique Tuna, responsável pela organização e apresentação da edição. “Era uma autora preocupada não apenas com as questões do tempo dela como também em como agir sobre essas questões. São textos de intervenção.”

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Textos com opinião

A própria autora se apresenta como “repórter”, mas a estruturação dos textos não segue exatamente as técnicas de reportagem clássicas que vigoram hoje, nem antecipa as variações do jornalismo literário surgidas posteriormente. Ainda que passe longe da isenção, a poeta-repórter consegue criar um certo distanciamento daquilo que apura, com olhar panorâmico. “O papel do repórter não é dar solução às coisas. É contar o que viu. Chegou aqui, parou. Os outros que tirem as conclusões”, escreve ela no ensaio-reportagem “Economia do intelectual”, de 1939.

Só que, na prática, não é bem assim. Cecília nunca esconde suas opiniões e críticas. Elogia o esforço de feministas como Bertha Lutz na criação do Estatuto da Mulher e na luta pelo voto feminino. Ligada à cultura indiana, transmite uma visível ojeriza ao visitar o cemitério de carnes de um frigorífico. Grande especialista em educação, lamenta que tantos alunos abandonem a escola por falta de recursos. Uma curiosidade: ao que tudo indica, Cecília conheceu seu segundo marido, Heitor Vinicius da Silveira Grillo, ao entrevistá-lo para o ensaio-reportagem “Educação profissional”.

“Os dois textos que ela escreveu sobre a condição feminina, trazendo as cenas de trabalho feminino, ainda são instigantes hoje”, diz Tuna. “Também são atuais os textos em que ela mostra a presença sufocante da moda nas nossas vidas e analisa a disparidade do mercado de trabalho no setor. Já o texto que ela escreve sobre as condições de trabalho dos professores poderia ser lido com prazer por Darcy Ribeiro.

Segundo Gustavo Henrique Tuna, Cecília Meireles foi uma das escritoras que mais colaboraram com a imprensa, tarefa que executou até o fim da vida — seu último texto foi publicado em setembro de 1964, dois meses antes de sua morte. Porém, a sua maciça produção jornalística (e em prosa de forma geral) ainda é pouco publicada em livro. Em parte porque, ao contrário de outros assíduos na imprensa, como Carlos Drummond de Andrade, ela não tinha o hábito de catalogar estes textos.

Antes de morrer, em 2011, o pesquisador Leodegário Amarante de Azevedo Filho mapeou toda a prosa da poeta, dividindo-a em 23 volumes, entre entrevistas, conferências, crônicas, ensaios e outros. Desses, só nove ganharam edições em livro.

A redescoberta da prosa de Cecília repaginou a imagem da poeta “alienada”, gerando uma série de teses que trazem à tona a sua participação pública em setores como educação, política e folclore. Ainda nos anos 1990, os trabalhos da editora e pesquisadora Valéria Lamego ajudaram a descortinar a autora que muitos pesquisadores buscam hoje.

“Sem a dimensão dessa imensa prosa de Cecília Meireles, a participação social dela fica extremamente nublada”, afirma Lamego, autora do livro “A farpa na lira — Cecília Meireles na revolução de 30” (Record). “Ela nunca foi aceita como pensadora brasileira da modernidade. E isso, em parte, por desconhecermos a prosa dela, e sobretudo os ensaios”.

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